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Quando os EUA quase enviaram um porta-aviões para o Brasil: a Operação Brother Sam

A decisão de Donald Trump de impor tarifas ao Brasil não é, na real, um fato isolado. Os EUA têm uma longa história de tentativas de interferência na política brasileira. Se hoje a justificativa de Trump é uma retaliação à perseguição judicial contra Jair Bolsonaro, em 1964 a situação era bem mais tensa: o país estava à beira de uma intervenção militar americana.

A Operação Brother Sam, amplamente debatida por autoridades americanas, a embaixada dos EUA no Brasil e os conspiradores golpistas, quase virou realidade. Olha só: tudo começou numa reunião da cúpula militar americana na tarde do dia 31 de março de 1964, poucas horas antes do golpe que instaurou a ditadura no Brasil.

O historiador Carlos Fico, da UFRJ, detalha o plano em seu livro “O Grande Irmão – Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo: O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira”. Segundo Fico, o aparato era impressionante: um porta-aviões, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros (dois com mísseis teleguiados) carregados com cerca de 100 toneladas de armas – incluindo gás lacrimogêneo (CS Agent) – e quatro navios-petroleiros para garantir o combustível, caso as forças legalistas boicotassem o abastecimento.

A operação, que partiria da Virgínia às 7h do dia 1º de abril, com previsão de chegada a Santos entre os dias 10 e 14, nunca aconteceu. Por quê? Humberto Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, avisou os americanos no dia 1º de abril que não precisaria do apoio logístico. A Brother Sam começou a ser desmontada, como afirma Fico. Apenas dois dias depois, a força-tarefa recebeu a ordem de retorno aos EUA.

Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora da Unesp e professora do Sesi, explica à BBC News Brasil que o objetivo era “assegurar o bom andamento do golpe”. Não era uma ameaça direta, mas sim apoio para garantir que os aliados americanos no Brasil tomassem o poder. “O contexto é de escalada do discurso anticomunista nos EUA”, destaca ela.

O medo do comunismo era a justificativa. Os militares americanos temiam que as políticas de João Goulart (1919-1976) significassem um alinhamento ao bloco soviético, no auge da Guerra Fria. Segundo Fico, o planejamento intervencionista começou ainda no governo Kennedy (1917-1963). Ele encontrou uma versão datilografada do plano de 11 de dezembro de 1963, menos de um mês após o assassinato de Kennedy. O plano, encabeçado pelo embaixador Abraham Lincoln Gordon (1913-2009), era dirigido a McGeorge Bundy (1919-1996), conselheiro de Segurança Nacional. Em 2001, Gordon admitiu que, nos últimos dias de março de 1964, Washington planejava fornecer armas e munições para evitar um governo de esquerda no Brasil.

Fico reconhece que a atuação de Gordon é controversa, mas ressalta que, no contexto da Guerra Fria, o embaixador agiu de acordo com suas convicções de “cold warrior”. Os documentos, inicialmente confidenciais, foram revelados na década de 1970, graças à pesquisa da historiadora americana Phyllis R. Parker, que comprovou o acompanhamento de perto da situação política brasileira desde 1961. Os documentos demonstravam preocupação com “qualquer tentativa de mudar significativamente, por violência ou de outro modo, o caráter do regime que governa o Brasil”, explica Fico. A embaixada manteria contatos secretos com os conspiradores para exercer influência. Tudo baseado no “risco de o Brasil tornar-se comunista”.

Para os americanos, os militares brasileiros eram a única força capaz de deter essa ameaça. Gordon acreditava que Goulart implantaria uma “ditadura peronista” e seria dominado pelos comunistas. O plano previa a formação de um novo governo conduzido pela direita golpista, que precisaria controlar uma parte significativa do país para ser reconhecido internacionalmente. Mas, para Vitor Soares, apresentador do podcast “História em Meia Hora”, o que estava em jogo era o controle político da região, e não necessariamente o risco de comunismo. Soares destaca que Goulart era reformista, não comunista, e suas propostas de reforma agrária e ampliação do acesso à educação e ao voto eram vistas como ameaça no contexto da Guerra Fria. Enrique Natalino, do Cebrap, reforça que a “ameaça comunista” era mais uma construção ideológica do que uma realidade. A operação Brother Sam não envolveu uma invasão militar direta, mas sim uma mobilização de apoio logístico e político, com atuação clandestina de militares e civis americanos, com apoio do Departamento de Estado e da CIA.

O desembarque de tropas só ocorreria com evidência clara de intervenção soviética ou cubana. Phyllis R. Parker, em seu livro “Brazil and the quiet intervention, 1964”, destaca que a embaixada americana previa um possível confronto entre Goulart e apoiadores de esquerda contra a liderança militar alinhada a setores conservadores. Os militares brasileiros eram aliados tradicionais dos EUA, herança da Segunda Guerra Mundial. Mayra Goulart, professora da UFRJ, aponta uma convergência ideológica entre as elites brasileiras e os governos americanos, com o anticomunismo servindo como pretexto para a oposição a governos que priorizassem as classes populares.

Pouco antes do golpe, Gordon enviou um telegrama ultrassecreto ao Departamento de Estado, reafirmando suas teses sobre os planos golpistas de Goulart com a colaboração do PCB. Esse documento, revelado integralmente em 2004, demonstrava preocupação com a possibilidade de o Brasil se tornar comunista e a deflagração de uma guerra civil. O principal contato americano era o general José Pinheiro de Ulhoa Cintra, que seria responsável por conseguir armas e combustível no Brasil. Cintra era descrito como “um dos grandes revolucionários do Exército” por Castelo Branco e como um homem “violento” por Costa e Silva. Gordon ainda coordenou a redação do “Plano de Defesa Interna para o Brasil”, que avaliava as condições de segurança do país em relação a ameaças internas aos interesses americanos. O plano sugeria uma entrega clandestina de armas de origem não americana para evitar acusações de intervencionismo. A operação imaginada por Gordon incluía o descarregamento de um submarino não identificado na costa de São Paulo. A mobilização das “forças amistosas” era vista como suficiente, mas a retaguarda seria preparada para uma resistência prolongada ou contraofensiva soviética.

Para Vitor Soares, o apoio americano ao golpe foi logístico, militar e direto, só não houve intervenção militar porque os conspiradores deram conta sozinhos. Quando a operação foi desmontada, a preocupação passou a ser o custo: 2,3 milhões de dólares. Dean Rusk (1909-1994), secretário de Estado americano, questionou quem arcaria com a despesa.

Mayra Goulart compara a “guerra” econômica atual com as tarifas de Trump ao envio de tropas em 1964, como exemplos da ingerência americana na América Latina. Márcio Coimbra, ex-diretor da Apex, vê ambos os cenários como reflexo do interesse estratégico constante dos EUA sobre o Brasil, mas com métodos diferentes: os EUA abandonaram operações militares clandestinas em favor de ferramentas econômicas e diplomáticas. Bruna Gomes dos Reis lembra que em ambos os casos houve brasileiros que acionaram os EUA. Enrique Natalino também reconhece semelhanças, com o objetivo de controle estratégico presente em ambos os momentos. A diferença, segundo Natalino, está nos métodos de intervenção, que evoluíram ao longo do tempo.

Fonte da Matéria: g1.globo.com