A exposição de crianças nas redes sociais acende um alerta sobre os impactos na saúde mental, segurança e futuro digital dos pequenos. A polêmica ganhou força com casos que viralizaram, como o de uma mãe que, em vídeo no TikTok, obrigou a filha a beber suco até chorar, acumulando milhões de visualizações e gerando uma enxurrada de comentários, entre apoio e indignação. A justificativa da mãe? A menina mentia sobre o consumo do produto. A BBC News Brasil tentou contato, mas não obteve resposta.
Esse, porém, não é um caso isolado. O termo “oversharenting” — a junção de “excessivo”, “compartilhar” e “parentalidade” — define bem essa superexposição digital. A vida doméstica virou conteúdo, e muitas vezes, fonte de renda.
“Olha só, do ponto de vista emocional, expor crianças a situações constrangedoras pode detonar a saúde mental, os relacionamentos e as perspectivas futuras delas”, afirma Maria Mello, coordenadora do eixo digital do Instituto Alana. Ela completa: “Isso pode, inclusive, minar a autoestima e aumentar a ansiedade, afetando o relacionamento delas com a família.”
Um dos primeiros casos a explodir no Brasil foi em 2020, com a hashtag #SalvemBelParaMeninas. Internautas criticaram os pais da então pré-adolescente Bel, de 13 anos, por forçá-la a participar dos canais “Bel Para Meninas” e “Fran Para Meninas”, com mais de 13 milhões de inscritos. Vídeos antigos, como um em que Bel simula um afogamento e outro onde vomita após um desafio alimentar, reacenderam o debate. Na época, o pai alegou controle editorial e roteirização dos vídeos. Hoje, aos 18 anos, Bel nega ter sido forçada. Isabel Peres, aliás, acredita que o caso foi desproporcionalmente ampliado, e seus pais mal interpretados.
Mas os danos para as crianças podem ser profundos. A psicóloga Patrícia Guillon Ribeiro, mestre em Psicologia da Infância e Adolescência da PUCPR, explica que o impacto varia com a idade. Em crianças menores, o dano pode não ser imediato, mas em crianças maiores, a exposição de momentos íntimos afeta a autoestima. “É tipo tomar uma bronca na frente da família toda, só que em escala global!”, compara ela. “A criança fica confusa, sem entender o certo e o errado, gerando ambiguidade no senso moral.”
E esse tipo de conteúdo serve de “modelo” para outras famílias, alerta Mello. Influenciadoras como Virgínia Fonseca, com mais de 52 milhões de seguidores, que compartilha a rotina com os filhos, exemplificam isso. Em entrevista a Hugo Gloss, ela rebateu as críticas: “É a vida deles! Não vou parar por causa deles. Eles vão ter que me seguir. Só paro se algum pedir, depois dos 18 anos”. A assessoria da influenciadora não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Quando o lucro entra em cena, a situação complica ainda mais. Mello explica que a exposição para campanhas publicitárias configura trabalho infantil artístico, exigindo alvará judicial. A advogada Cléo Garcia, doutoranda na Unicamp, critica esse tipo de trabalho, mesmo com autorização legal, pois crianças não têm maturidade para entender o impacto futuro. “Muitas dizem ‘sim’ só para agradar os pais”, afirma.
Há casos ainda mais graves, como o denunciado pelo Instituto Alana: crianças em propagandas de jogos de azar no Instagram, prática ilegal no Brasil. A Meta, dona do Instagram, alegou ter removido as publicações.
Por outro lado, há quem opte por não expor os filhos. A influenciadora e neuropedagoga Maya Eigenmann, com mais de 1,8 milhões de seguidores, parou de mostrar o rosto dos filhos há seis meses, preocupada com a segurança digital e a circulação ilegal de imagens, inclusive manipuladas por IA. “É um linchamento público aprovado pelos pais!”, critica ela, sobre a exposição de momentos delicados. Até mesmo fotos “inocentes” podem ser problemáticas. Rebecca Cirino, com mais de 10 mil seguidores, também evita situações constrangedoras, apagando posts antigos que poderiam causar desconforto futuro. “O que minha filha verá se procurar meu nome no Google?”, questiona.
Especialistas concordam: é possível usar a internet de forma saudável, mas com responsabilidade, sem exposição íntima, ridicularização ou uso comercial da imagem. Há casos de jovens que recorreram à Justiça para remover imagens vexatórias da infância, mostrando o impacto duradouro dessa superexposição.
Para Mello e Garcia, o Estado deve investir em educação, fiscalizar práticas ilegais e regulamentar o “sharenting”, como propõe o Projeto de Lei 4776/2023. O controle sobre as redes sociais também é crucial, para garantir o “direito ao esquecimento”.
A Meta não se pronunciou. O TikTok afirmou que analisa o caso do suco e aplicará as “regras apropriadas” se houver violação das diretrizes, que proíbem conteúdos que coloquem jovens em risco. A plataforma garante ter políticas rigorosas de publicidade e uma equipe de especialistas em desenvolvimento infantil. “Usuários que criam contas com filhos menores de 13 anos devem demonstrar claramente a administração por um adulto”, finalizou a empresa.
Fonte da Matéria: g1.globo.com