De Spike Lee a Kendrick Lamar, passando por Kareem Abdul-Jabbar, a influência do cinema asiático, principalmente o kung fu, na cultura negra americana é inegável. Mas qual a raiz dessa conexão tão profunda? A resposta, na real, vai além da tela.
O novo filme de Spike Lee, “Do Mais Alto ao Mais Baixo” (que estreia no Brasil em 5 de setembro), uma releitura do clássico de Akira Kurosawa, “Céu e Inferno”, é só a ponta do iceberg. A gente tá falando de uma influência cultural fortíssima, que começou a se consolidar décadas atrás.
Nos anos 70, o kung fu não só revolucionou o cinema de ação americano como se tornou um símbolo poderoso para a juventude negra das grandes cidades. Olha só: imagine os guetos americanos dos anos 60 e 70, palco de violência, abandono estatal e gangues. Grupos como o Partido das Panteras Negras surgiam como resposta à opressão. E em meio a esse caos, Hollywood pouco representava a realidade desses jovens.
Aí, entra o kung fu. Filmes como “Cinco Dedos de Violência” e “O Martelo de Deus”, lançados no início dos anos 70, abriram as portas para uma enxurrada de produções de artes marciais, incluindo os clássicos de Bruce Lee, como “O Dragão Chinês” e “A Fúria do Dragão”. Esses filmes, exibidos em cinemas da 42ª Avenida em Nova York, eram acessíveis financeiramente, um refúgio para uma comunidade que raramente via seus heróis refletidos nas telas. Os protagonistas asiáticos, apesar da diferença cultural, representavam a luta contra a opressão, algo que ressoava profundamente na realidade dos guetos.
A fusão entre o cinema blaxploitation e o kung fu aconteceu em “Operação Dragão” (1973), com Bruce Lee e Jim Kelly, um dos primeiros astros negros do gênero. Lee, figura central nessa ponte cultural, inclusive contracenou com Kareem Abdul-Jabbar em “Jogo da Morte”. Essa mistura validou a presença de heróis negros em narrativas que espelhavam as lutas da comunidade contra a discriminação. Filmes como “Cleópatra Jones” e “O Dragão Negro” seguiram essa linha, criando uma estética de poder e resistência que influenciou outras formas de expressão artística.
O Wu-Tang Clan é um exemplo gritante dessa influência. Criados em meio a essa cultura, eles incorporaram a filosofia do kung fu na alma do grupo. O filme “Shaolin vs. Wu Tang” inspirou o nome da banda e suas técnicas marciais se transformaram em rimas e batidas. Até o breakdance, com seus movimentos inspirados nas artes marciais, como relatado pelos coreógrafos Rich e Tone Talauega na série “The Get Down” da Netflix, reflete essa conexão.
Essa mistura de culturas persistiu nos anos 80 e 90, aparecendo em filmes como “Blade” (com Wesley Snipes), “A Hora do Rush”, “Ghost Dog: O Caminho do Samurai” e até na animação “Avatar: A Lenda de Aang”, com a consultoria do mestre de kung fu negro, Sifu Kisu. No rap contemporâneo, Kendrick Lamar, com sua persona “Kung Fu Kenny” inspirada em Don Cheadle em “A Hora do Rush 2”, no álbum “DAMN.” (2017), é prova disso. Don Cheadle, aliás, aparece no clipe de “DNA”.
Spike Lee, por sua vez, sempre demonstrou admiração pelo cinema japonês. “Ela Quer Tudo” (1986), inspirado em “Rashomon” (1950), de Kurosawa, é um exemplo. Agora, com “Do Mais Alto ao Mais Baixo”, ele revisita “Céu e Inferno” (1963), num filme que conta com Denzel Washington e A$AP Rocky, entre outros, para denunciar as desigualdades sociais.
Em resumo, o kung fu não foi apenas entretenimento. Para muitos jovens negros, ele representou uma forma de identificação, resistência e inspiração para contar suas próprias histórias, quebrando barreiras linguísticas e superando a opressão. Essa influência, que marcou gerações, continua viva e pulsante na cultura americana até hoje.
Fonte da Matéria: g1.globo.com