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O Brasil ainda sofre do “complexo de vira-lata”? Odete Roitman e o debate que persiste

A personagem Odete Roitman, da novela “Vale Tudo” (1988 e 2025), voltou a reacender um debate antigo: o pessimismo crônico em relação ao Brasil. Será que a gente ainda sofre do famoso “complexo de vira-lata”? Especialistas ouvidos pela DW dizem que sim, embora a intensidade oscile com o tempo. Afinal, sucessos recentes de atletas e artistas brasileiros ajudaram a dar uma turbinada no orgulho nacional, né? Mas a sensação de inferioridade em relação a países desenvolvidos, essa persiste.

“Esse país não vai pra frente porque o povo não gosta de trabalhar, é um povo preguiçoso”. Essa frase da empresária Odete Roitman, interpretada magistralmente por Débora Bloch, cai como uma luva na discussão. A própria Débora já disse que a vilã personifica esse complexo de inferioridade, essa mania de menosprezar tudo o que é nacional. Manuela Dias, autora do remake de “Vale Tudo”, vai direto ao ponto: falar mal do Brasil “tá saturado”.

A expressão “complexo de vira-lata” surgiu lá em 1958, na crônica “À sombra das chuteiras imortais”, do mestre Nelson Rodrigues, publicada na revista Manchete. O gênio definiu o brasileiro como “um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”. Na visão dele, essa “falta de fé em si mesmo” só foi superada com o primeiro título da seleção brasileira na Copa do Mundo, em 1958, contra a Suécia. Uma vitória sobre europeus, que na época representavam o auge do futebol mundial.

Mas, olha só, segundo os especialistas da DW, esse pessimismo continua vivo. Ele vai e volta, ora mais forte, ora mais fraco. As críticas da Odete Roitman, sejam em 1988 ou 2025, ainda reverberam no público. Porém, os feitos de nossos atletas e artistas no cenário internacional ajudam a acender a chama do orgulho nacional. A gente pode citar:

* A ginasta Rebeca Andrade, com seu ouro olímpico em Paris;
* Hugo Calderano, com a prata no Mundial de Tênis de Mesa (em maio deste ano);
* O Oscar de melhor filme estrangeiro para “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles;
* A Palma de Ouro de melhor ator e direção em Cannes para “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho.

**Economia da Inferioridade**

Gilberto Maringoni, pesquisador da Ufabc (Universidade Federal do ABC), acredita que a cultura e o esporte, apesar de darem uma animada, não são suficientes para explicar esses momentos de euforia. Ele lembra que em 1958, durante a Copa, o Brasil vivia um período de crescimento econômico, com a construção de Brasília e o impulso da industrialização.

Mas, a partir dos anos 80, a situação mudou. O país enfrentou hiperinflação, desemprego, e a indústria perdeu espaço no PIB. “A economia vive um voo de galinha, aos solavancos, sem conseguir decolar”, afirma Maringoni. “Quando precisamos importar tecnologia, isso reforça a ideia de que não somos capazes de produzi-la, e que tudo que vem de fora é melhor. Ou quando focamos só em exportar commodities, parece que não temos capacidade de produzir mercadorias sofisticadas – e o Brasil tem, sim!”

Uma pesquisa da AtlasIntel (abril de 2025) mostrou que 44% dos brasileiros consideram o mercado de trabalho ruim, e 37% acham a situação econômica familiar desfavorável. Criminalidade, corrupção e inflação aparecem como os maiores problemas. Eduardo Giannetti, economista, diz que, em 2025, o Brasil está num ponto intermediário entre a inferioridade e a autoestima.

“O Brasil viveu um momento quase de euforia no fim do segundo mandato do Lula, com um caminho promissor de crescimento econômico e ascensão da classe média. Agora, com a economia em baixa, a confiança é bem menor”, analisa Giannetti. Para ele, esse pessimismo tem muito a ver com a visão de uma elite econômica e acadêmica, que considera o Brasil uma “cópia malfeita” da civilização ocidental, ignorando nossa riqueza cultural e nossa forma de vida, mais voltada para as relações humanas do que para o consumo desenfreado.

**Raízes Coloniais**

A ideia de inferioridade, segundo os pesquisadores, está enraizada na história do país, desde a colonização e a miscigenação de europeus, indígenas e africanos escravizados. “Para obrigar um escravo a trabalhar, não bastava o chicote e a corrente, era preciso convencê-lo de que era inferior”, explica Maringoni. “O complexo de vira-lata foi inoculado na população, seja pelo colonizador, seja pelas classes dominantes.”

Depois da abolição da escravidão (1888), a imigração europeia reforçou essa ideia de “embranquecimento”, como lembra Maringoni, citando intelectuais como Nina Rodrigues e Silvio Romero, que usaram o racismo científico para justificar a inferioridade do Brasil devido à mistura étnica. Giannetti concorda que essa visão contribuiu para o pessimismo, mas discorda do termo “complexo de vira-lata”: “Por que eleger o vira-lata como o símbolo do que temos de pior? O vira-lata é a miscigenação! Há um subtexto de que o ‘puro’ é superior ao ‘misturado’. Isso é grave, denota discriminação racial. O verdadeiro complexo de vira-lata é achar que há algo errado em ser vira-lata.”

**Superando o “Viralatismo”**

A ideia de inferioridade persiste. Mas, para a filósofa Marcia Tiburi, quem realmente carrega esse complexo não são as populações alvo dessa narrativa, mas sim as classes dominantes. “Essa humilhação é uma tecnologia política usada pelos poderosos, donos da violência, num país colonizado, patriarcal e racista como o nosso, para explorar os mais pobres, as mulheres e os negros”.

A repetição dessa ideia por intelectuais e elites fez com que ela se tornasse uma “verdade”. “Criou-se a ideia de que o brasileiro não trabalha. Quem já viveu na Europa sabe o quanto os brasileiros trabalham! São falas que funcionam pela repetição, criando uma verdade que domina a subjetividade”, afirma Tiburi.

Porém, os grupos historicamente humilhados estão se organizando em movimentos sociais (negros, feministas etc.), se libertando desse estereótipo negativo. “A gente vê hoje uma negritude orgulhosa de si no Brasil”, destaca Tiburi.

Para superar esse sentimento de que o país “não deu certo”, é preciso mais do que mudança de mentalidade: melhorias reais nas condições de vida – educação, transporte, segurança, saneamento básico. Os dados são alarmantes: 29% de analfabetismo funcional, 37,5% das casas sem acesso à rede de esgoto e 27,6% das residências com insegurança alimentar.

“Temos um leque de desafios que o país vem deixando de lado”, afirma Giannetti. “Mas a agenda simbólica também é importante. Oswaldo de Andrade já dizia: ‘tupi or not tupi?’ A resposta é ‘tupi and not tupi’. Vamos absorver o que há de melhor na cultura ocidental moderna, na medicina, na tecnologia, mas sem perder nossa originalidade.”

Fonte da Matéria: g1.globo.com