** Em fevereiro de 2025, a vida de Stefanie Anderson virou de cabeça para baixo. Sentada na cozinha com o marido, a funcionária federal se viu bombardeada por perguntas aterradoras: seus filhos estavam a salvo? Deveriam tirá-los da escola? Deveriam deixar a casa? Uma amiga havia lhe enviado um link para o que parecia um pesadelo: a “lista de vigilância DEI” da American Accountability Foundation (AAF), grupo de direita com fortes laços com a administração Trump. Lá estavam seu nome, foto, salário, histórico profissional… e acusações de que ela e outros funcionários federais impulsionavam políticas “radicais” de diversidade, equidade e inclusão. “Meu coração desabou”, lembra Anderson.
Essa profissional de saúde pública, com longa trajetória nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), trabalhou em Serra Leoa durante a crise do ebola e, mais recentemente, em programas de prevenção ao HIV. Após a publicação de seus dados, seu telefone não parou: cerca de 30 ligações por dia, de números desconhecidos, por um mês inteiro. Anderson mudou o visual, se isolou em casa, redirecionou correspondências e orientou os filhos a redobrarem a segurança. Como mulher negra, ela confessa: “Me senti como uma criminosa num cartaz de procurada, igual aos anúncios de escravizados fugitivos do século XIX”. A imagem de Anderson, uma funcionária do CDC afastada administrativamente, estampou jornais em 17 de junho de 2025.
Anderson é apenas uma entre as 175 funcionárias federais – a maioria servidoras de carreira – listadas pela AAF, que deseja vê-las demitidas por supostamente promoverem ideologias liberais. Muitas são mulheres e pessoas negras com extensa experiência em governos republicanos e democratas. A maioria trabalha nos bastidores da administração pública, longe dos holofotes.
A Reuters conversou com 20 dessas pessoas, todas revelando suas histórias pela primeira vez. A maioria relatou reforçar a segurança em casa, evitar locais públicos, excluir contas de redes sociais ou remover informações pessoais da internet. Mais da metade desenvolveu problemas de ansiedade; algumas descreveram um colapso silencioso, com depressão e a angustiante sensação de que precisavam desaparecer.
A investigação da Reuters, baseada em documentos legais, registros públicos e entrevistas com mais de 30 fontes, traça a evolução da AAF: de uma organização de oposição focada em Biden a uma ferramenta poderosa na cruzada de Trump para eliminar seus “inimigos”. O alvo? A força de trabalho federal. Pelo menos 88 das pessoas listadas pela AAF deixaram o governo ou foram afastadas administrativamente – algumas demitidas em massa durante a gestão Trump; pelo menos duas, temendo por sua segurança, fugiram do país.
Em vez de mirar em altos cargos políticos, a AAF concentra-se em servidores de carreira que executam a política do governo. Tom Jones, presidente da AAF, e seus apoiadores afirmam que esses funcionários têm inclinação liberal e poderiam sabotar a agenda de Trump. Para Jones, o público tem o direito de saber quem são essas pessoas. “Eles querem ser burocratas irresponsáveis que trabalham nessas agências e nunca aparecem”, declarou à Fox News em junho de 2024. “Vamos mostrar quem são essas pessoas e quais são suas motivações”. Embora Jones não tenha respondido a um questionário detalhado sobre a AAF e o impacto de suas listas, defendeu seu trabalho em declaração à Reuters: “É importante que os servidores anti-Trump saibam que alguém está observando e anotando nomes; defendemos nossa pesquisa e reportagem, e nosso único arrependimento é que mais pessoas nas nossas listas não tenham deixado o governo e passado seus empregos para patriotas”.
Desde outubro, a AAF publicou três listas. A primeira, uma “lista DHS”, listou 60 funcionários como “alvos” por seu trabalho em políticas de imigração. Em janeiro, outras duas listas foram divulgadas: uma com “ideólogos políticos” no Departamento de Educação e outra com funcionários envolvidos em iniciativas de diversidade. Cada lista inclui fotos, dados pessoais e acusações de atividades “subversivas”, “divisivas” ou “de esquerda”. Entretanto, funcionários federais têm o direito, sob leis federais contra discriminação política, de se envolverem em atividades políticas privadas.
Lançadas antes da eleição de 2024, as listas ajudaram a transformar a promessa de Trump de “limpar o estado profundo” em uma ferramenta de perseguição. Após a publicação da lista do DHS, uma pessoa postou uma foto de balas no X, comentando uma publicação da AAF. Enquanto Trump liderava uma campanha que ele mesmo definiu como de “retribuição”, os servidores públicos listados pela AAF pagaram o preço. Em Maryland, uma mãe foi confrontada em uma biblioteca; no Texas, um homem quebrou o vidro da casa de uma juíza de imigração; na Geórgia, uma viatura policial ficou estacionada por uma semana em frente à casa de uma funcionária do CDC.
Para os alvos, os sites da AAF são instrumentos de difamação e incitação ao assédio. A AAF, no entanto, evita o doxxing – publicação maliciosa de informações pessoais – omitindo endereços e números de telefone. Embora os sites estejam no limite da legalidade, especialistas em liberdade de expressão alertam que as listas criam um efeito inibidor no serviço público. “O que é tão ominoso nesses sites é que eles estão perto da linha do ilegal, mas sem ultrapassar”, disse Danielle Citron, professora da Escola de Direito da Universidade da Virgínia. “Eles são projetados para silenciar, intimidar e inspirar outras pessoas a ferir” quem é citado.
A AAF promove seu trabalho como parte da defesa da plataforma “América First” de Trump, afirmando expor “a verdade por trás das pessoas e grupos que estão minando a democracia americana”. Nos sites, a mensagem aos alvos é clara: “Se você se vê nesta lista e deseja ser removido, por favor nos encaminhe evidências de que você renunciou ou foi demitido.”
Enquanto a AAF persegue funcionários por suposto viés político, a administração Trump afrouxou as restrições à politização do serviço público, facilitando que funcionários apoiem abertamente o presidente no trabalho.
Criada em dezembro de 2020, após a derrota de Trump, a AAF tinha como objetivo inicial, segundo Jones, “atrapalhar a administração Biden”. O grupo tem laços com uma rede de organizações conservadoras, incluindo o Conservative Partnership Institute, presidido por Jim DeMint e Mark Meadows. Recebeu US$ 100 mil da Heritage Foundation e apoio de grupos ligados a Trump, incluindo um liderado por Russell Vought (então diretor de orçamento de Trump) e outro por Stephen Miller (ex-assessor sênior de Trump). Jones foi conselheiro no Project 2025 da Heritage Foundation. A Heritage, Vought, Miller e a Casa Branca não responderam aos pedidos de comentário.
Mais de 200 mil funcionários federais deixaram o serviço público desde a posse de Trump. A administração afirma que cerca de 154 mil pediram demissão voluntariamente e 55 mil foram demitidos. A Reuters não pôde confirmar se as listas da AAF influenciaram essas decisões. O Departamento de Justiça e o de Saúde e Serviços Humanos negaram influência; os departamentos de Educação e Segurança Interna não responderam.
Shelpor Guillen Dominguez, ex-funcionária do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), sentiu medo ao ver seu nome na lista em fevereiro. O site criticou seu trabalho com programas de diversidade e exibiu um vídeo de uma palestra em que ela discutia a ampliação de oportunidades para estudantes de diferentes origens socioeconômicas. A AAF acusou-a, sem provas, de excluir “certas raças” em seus comentários. “Eu nem mencionei raça”, disse Dominguez. “Parecia que estavam me enquadrando como inimiga do Estado”. A AAF compartilhou suas informações no X, acusando-a de remover a palavra “diversidade” do seu título para manter o emprego – uma mudança, porém, que fazia parte de uma reorganização departamental. Dominguez excluiu suas redes sociais, bloqueou seu relatório de crédito e ativou alertas online. Em julho, foi demitida. “Sempre foi meu sonho trabalhar para o governo federal”, disse ela. “Agora tudo está desmoronando”.
Kiana Atkins, funcionária do National Institutes of Health, sentiu um estresse semelhante. “Não conseguia dormir”, disse Atkins. “Tinha medo de sair sozinha.” Após ser listada, ela sofreu forte ansiedade, abandonou um programa de desenvolvimento profissional, desativou sua conta no LinkedIn e tentou, sem sucesso, remover seu nome do site da AAF. Sentindo-se insegura, Atkins deixou os EUA e foi morar com familiares na América Central. “Eu não me senti
Fonte da Matéria: g1.globo.com