Os retiros do movimento Legendários, que prometem reconstruir a masculinidade, atraem milhares de homens – alguns famosos – gerando, ao mesmo tempo, muita polêmica nas redes sociais. Mas o que, na real, ocorre nesses encontros? Após a série de reportagens “Diário de um Legendário”, o g1 conversou com três psicanalistas – Christian Dunker, Maria Homem e Pedro Onari – para analisar a metodologia utilizada nesses retiros, que envolvem um intenso desgaste físico e emocional. Acompanhe a análise, dia a dia:
**DIA 1:** A fé, o cansaço e as regras militares.
**DIA 2:** Conversas sobre família que levam muitos homens às lágrimas.
**DIA 3:** Um verdadeiro “reality show” com suor, lama e um teste final de coragem.
**DIA 4:** O homem como “sacerdote do lar”.
Christian Dunker, professor da USP e escritor premiado com o Jabuti em 2012; Maria Homem, escritora, pesquisadora da USP e professora na FAAP, coautora do livro “Coisa de menino: uma conversa sobre masculinidade, sexualidade, misoginia e paternidade” (Papirus Debates); e Pedro Onari, especialista em psicanálise cristã, terapeuta familiar e fundador do Instituto Onari, analisaram o método.
**Resgatando o Passado:**
Maria Homem enxerga nos retiros um resgate de valores retrógrados, ligados a uma estrutura patriarcal em crise. “É uma forma de organizar o mundo que funcionou por milênios: uma estrutura hierárquica, piramidal, com um líder forte e potente, que erra pouco. Uma imagem idealizada do divino”, explicou. Esse retorno simbólico ao “pai forte”, segundo ela, acontece num momento de grande vulnerabilidade. “Somos seres frágeis, vulneráveis, crianças. Queremos família. As palavras usadas nas pregações, nas minipalestras, remetem a pai, irmão, família, general, lutador, Cristo… significantes que representam essa estrutura simbólica milenar”, afirmou a psicanalista. Para ela, a tríade família-igreja-exército dominou a civilização, relegando o feminino a um papel oposto.
Pedro Onari também vê uma tentativa de reconstrução simbólica da família, principalmente da paternidade. “A reportagem mostra a ‘casa destruída’, a casa abandonada. Vemos muitos lares desfeitos, pais disfuncionais, alcoólatras… A família está fragilizada. Essa geração não tem mais aquelas figuras de pai, mãe, avós cuidando… Os Legendários querem oferecer esse modelo perdido”, disse.
Christian Dunker, por sua vez, destaca como o protestantismo brasileiro resgata mitologias judaicas do Antigo Testamento, com a ideia de “subir a montanha”. Uma prática usada há décadas por pastores neopentecostais, como lembra o caso do então candidato à Presidência em 2018, Cabo Daciolo. “Era um rito dos antigos mesopotâmios. Muitos povos tinham a ideia de estar mais perto de Deus na montanha. A montanha tem um apelo narrativo interessante, compatível com as estratégias discursivas do neopentecostalismo”, analisou Dunker.
**Técnicas de Hipnose?**
Pedro Onari identificou nos retiros uma aplicação intensa de técnicas de alteração de consciência, semelhantes à hipnose e à regressão emocional. “Freud já dizia que o sono protege a saúde mental. Ficar sem dormir te deixa em estado alfa, alterando o estado mental”, explicou Onari. Esse estado, segundo ele, é propício a sugestões, principalmente com estresse físico, privação de sono, fome e comandos repetitivos. Essas técnicas, acessam memórias profundas, muitas vezes ligadas à infância e à figura paterna. “No segundo dia, já se fala da casa destruída, dos traumas da infância. Quem não passou por privações na infância?”, questionou. Ele critica ainda a figura do “pai de família legendário” como autoridade absoluta: “Jesus era um líder manso, que questionava, acolhia. O maior líder sabe ouvir. Se o retiro termina com a ideia de ‘você é o cara’, isso é religiosidade, não espiritualidade.”
**O Experimento de Milgram:**
Christian Dunker comparou a experiência dos Legendários ao famoso e polêmico Experimento de Milgram, realizado em 1961 na Universidade de Yale (EUA). “Um ator numa cadeira, e você, sem saber que era um truque, dava choques nele, gradualmente”, explicou. 65% dos participantes chegaram a aplicar o choque máximo, potencialmente mortal. “Nos Legendários, é parecido: você começa subindo a montanha, aceita comer só uma barra de chocolate, depois um pouco mais… até perder o pé”, disse Dunker. Mas ele ressalta um “antídoto” final: a luta na lama, onde os participantes são confrontados com o erro e a necessidade de mudar a forma de lutar. “É um truque pedagógico eficaz. Eles incitam a obediência, e depois dizem: ‘Cara, você pode se ferrar’. Eles passam uma mensagem libertadora, de forma bruta, mas libertadora”.
**Novas Perguntas, Novas Respostas:**
Para Maria Homem, o patriarcado já era. “A pergunta é: o melhor caminho é voltar ao sistema anterior, com a idealização do macho e a demonização da fêmea? Não! Isso não é saída. Como ser um homem melhor? Como ser um sujeito melhor, respeitando as diferenças, vivendo em convívio sustentável? Qual a nova legenda? A nova lenda pessoal? São perguntas maravilhosas”, afirmou.
**Feridas Abertas:**
Pedro Onari alerta que os retiros podem abrir feridas emocionais profundas sem estrutura para o fechamento. Ele relatou casos de empresários que participaram em meio a crises conjugais, sem obter os resultados esperados. “O casamento estava uma porcaria, e não resolveu ali. Não é ir para os Legendários que cura traumas e restaura relacionamentos. É necessário tratamento individualizado”, finalizou.
Fonte da Matéria: g1.globo.com