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Iran Air 655: O Dia em que a Guerra no Golfo Custou 290 Vidas Inocentes

Domingo, 3 de julho de 1988. Uma tragédia que chocou o mundo e marcou para sempre as relações entre EUA e Irã. Milhões de iranianos assistiram, horrorizados, às imagens na TV: corpos flutuando no Golfo Pérsico. Passageiros e tripulantes do voo Iran Air 655, que havia decolado minutos antes de Bandar Abbas, no sul do Irã. Um total de 290 pessoas, incluindo 65 crianças e 254 iranianos, perderam suas vidas. Mas essa não foi uma simples tragédia aérea; foi um abate, cometido pelos Estados Unidos.

O Airbus A300 da Iran Air foi atingido por dois mísseis, a queima-roupa, em pleno voo comercial, em um corredor aéreo internacionalmente reconhecido. O responsável? O USS Vincennes, um dos navios de guerra mais avançados da época. Até hoje, o episódio é cercado de mistério e versões conflitantes, um incidente militar que deixou marcas profundas na diplomacia internacional. A tensão entre os dois países, já deteriorada, explodiu novamente décadas depois, em junho de 2015, com ataques aéreos americanos em solo iraniano.

A história começa a bordo do USS Vincennes, um cruzador de mísseis guiados lançado em 1984 e parte da frota americana no Pacífico. Em 1988, o navio fazia parte de uma grande operação no Golfo Pérsico e no Estreito de Ormuz, região em plena guerra entre Irã e Iraque (sob o regime de Saddam Hussein). Ambos os países atacavam navios para prejudicar as exportações de petróleo do inimigo. Os EUA, aliados de Saddam, escoltavam navios saindo do Kuwait – a maior operação naval desde a Segunda Guerra Mundial, chamada “Earnest Will”.

O USS Vincennes, equipado com o sistema de combate Aegis (apenas cinco navios o possuíam!), era o orgulho da Marinha americana. Sob o comando do Capitão William Rogers III, um veterano com mais de 20 anos de serviço, o navio, naquela manhã, seguia para o Bahrein, onde ficava o centro de comando americano. Mas a região não ficou desprotegida; outros navios, como o USS John Hancock, USS Halsey e outros, patrulhavam a área.

Por volta das 7h (horário do Irã), a fragata USS Elmer Montgomery detectou lanchas iranianas perto de um navio paquistanês. Os iranianos estavam armados, segundo relatos americanos. O almirante Anthony Less, no Bahrein, decidiu enviar um helicóptero do Vincennes para verificar a situação. O Capitão Rogers recebeu ordens para manter o Vincennes mais ao sul, em águas dos Emirados Árabes Unidos.

Aí começa a tragédia. O tenente Mark Collier, no helicóptero, viu lanchas iranianas perto de outro navio, mas seu capitão não pediu reforço. Collier viu a frota recuar, mas, em vez de voltar, decidiu escoltá-las. Logo, ouviu tiros e explosões e reportou um ataque ao Vincennes.

Rogers interpretou isso como uma agressão, permitindo um contra-ataque, segundo as “regras de engajamento”, flexibilizadas após o ataque ao USS Stark em 1987 (37 militares mortos). O Vincennes partiu em direção à costa iraniana. Os radares detectaram uma possível ameaça: um caça F-14 iraniano.

Enquanto isso, em Bandar Abbas, o comandante Mohsen Rezaian, 38 anos, preparava a decolagem do voo 655 para Dubai. O voo estava atrasado, mas a viagem seria curta. Rezaian, treinado nos EUA, falava inglês fluentemente e sabia como se identificar por rádio. Ele utilizou o código 6760 no transponder, indicando aeronave civil, e voaria em corredor aéreo internacional. Às 10h15, decolou.

No Vincennes, a tensão era palpável. O operador de rádio detectou a decolagem em Bandar Abbas (usado para voos civis e militares). O suboficial Andrew Anderson verificou a lista de voos, mas o sistema IFF indicava aeronave civil – mas ele desconfiou.

Nos dez minutos seguintes, o Vincennes enviou diversas mensagens de rádio, em frequências militares e civis, alertando sobre a aproximação de um navio de guerra. Uma nova checagem no IFF mostrou, erroneamente, uma aeronave militar se aproximando. O medo era de um ataque de um F-14 iraniano.

“Possível Astro!”, gritou Anderson (código para F-14). Rogers decidiu acionar os mísseis, mas hesitou. Então, um grito: a aeronave estava descendo e acelerando, simulando um ataque. A apenas 18 km, às 10h24, Rogers ordenou o lançamento de dois mísseis SM-2 Block II. O primeiro atingiu o alvo.

A comemoração durou pouco. Uma asa no mar, grande demais para um F-14. Era o Iran Air 655. 290 pessoas morreram instantaneamente.

A comoção no Irã foi imensa. Nos EUA, a responsabilidade de investigar recaiu sobre o almirante William Fogarty. O sistema Aegis registrou tudo. A investigação revelou erros cruciais: o transponder do Iran Air nunca usou código militar. O sistema do Vincennes ainda lia sinais da pista de Bandar Abbas, interpretando-os erroneamente. O mais chocante: o Airbus NUNCA executou a manobra de ataque que Rogers descreveu.

O relatório de Fogarty atribuiu o erro à “confirmação de cenário”, uma condição psicológica em que, sob estresse, a tripulação interpretou a situação de acordo com suas expectativas. O Airbus estava em subida constante. Fogarty não culpou diretamente os militares, atribuindo o ocorrido à “névoa da guerra”, mas também culpou o Irã por permitir decolagens civis perto de uma área de conflito.

O USS Vincennes foi recebido como herói em San Diego, e vários tripulantes, incluindo Rogers, foram condecorados. O Irã reagiu furiosamente, acusando os EUA de assassinato. Um processo no Tribunal Internacional de Justiça resultou em um acordo em 1996: os EUA pagaram US$ 61,8 milhões às famílias das vítimas, mas nunca pediram desculpas formais.

Uma investigação da ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional) mostrou que o Iran Air recebeu quatro mensagens, sendo uma inequivocamente dirigida a eles. As outras mensagens do Vincennes usavam a velocidade em relação ao solo, enquanto o Airbus usava a velocidade em relação ao ar, causando confusão. Além disso, havia um avião militar iraniano próximo, possivelmente confundido com o alvo das mensagens.

Em 1992, a Newsweek, em um artigo intitulado “Mar de mentiras”, revelou que o Vincennes havia invadido o espaço aéreo iraniano, violando o direito internacional, e descreveu Rogers como “belicoso”. Rogers desviou o curso do navio sem autorização, acelerando o processo que culminou na tragédia.

As relações entre EUA e Irã, já frágeis, nunca mais se recuperaram. A cada 3 de julho, o Irã chora suas vítimas. A tragédia, pouco lembrada nos EUA, permanece um símbolo doloroso da hostilidade entre as duas nações.

Fonte da Matéria: g1.globo.com