O rapper Don L se deparou com uma situação inusitada: ao fazer compras em uma loja de utensílios domésticos, ouviu uma música que lhe pareceu familiar, com a vibe de Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, mas com uma letra, segundo ele, “esquisitaça”, tentando em vão soar como um hino feminista. O aplicativo de reconhecimento musical e o próprio Google não encontraram a fonte. A conclusão? A música era gerada por Inteligência Artificial (IA). “Cara, isso é muito doido! Um roubo perfeito, um crime perfeito!”, exclamou Don L ao g1.
Ele não foi o único. Vários vídeos nas redes sociais mostram estabelecimentos comerciais usando trilhas sonoras geradas por IA, levantando a suspeita de sonegação de direitos autorais. Mas será que é assim?
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) garante que não. Em entrevista ao g1, Isabel Amorim, superintendente do órgão, afirmou categoricamente: “O ECAD vai encaminhar o boleto para cobrança”. Independentemente da origem da música, o recolhimento dos direitos autorais em estabelecimentos comerciais que utilizam música ambiente segue normalmente.
A Ri Happy, por exemplo, já passou por essa situação. A loja criou uma rádio com músicas geradas por IA, personalizada para o público infantil, mas foi cobrada pelo ECAD. Em maio, em entrevista ao Painel S.A., a empresa alegou não ter dívida, justificando que as canções, criadas por IA, não seriam protegidas por direitos autorais. O g1 tentou contato com a Ri Happy, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
A questão, no entanto, é complexa e gera muitas dúvidas. Quem é o autor de uma música feita por IA? Os lojistas são obrigados a pagar direitos autorais? Se sim, para quem vai esse dinheiro? E se a música for gerada a partir de uma base de dados musicais, configura plágio?
Para entender melhor, o g1 conversou com representantes do ECAD, da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), especialistas em direito e músicos.
Primeiro, vamos ao funcionamento da arrecadação do ECAD: técnicos visitam e cadastram estabelecimentos (restaurantes, bares, lojas, etc.) que usam música ambiente; todos pagam direitos autorais, com valores que variam de acordo com o tamanho do local (uma pequena loja paga bem menos que um shopping); os boletos, mensais, costumam variar entre R$ 50 e R$ 5.000; o dinheiro arrecadado é distribuído aos artistas cujas músicas foram executadas, por meio de uma amostragem (o que gera controvérsias, pois não há controle exato do repertório de cada local).
O ECAD afirma que essa metodologia continua válida para músicas geradas por IA, considerando que qualquer execução pública exige licenciamento, e que essas obras são, em sua essência, reproduções baseadas em músicas já existentes e protegidas. “Quando você dá um prompt [instrução para a IA], ela se baseia no que já existe, no que é protegido. Você pode pedir um estilo, um ritmo, trechos de música…”, explicou Isabel Amorim.
O desafio, segundo o ECAD, está na distribuição. Modelos internacionais são estudados, como a divisão entre o criador do prompt e os titulares das obras originais. Uma associação alemã, por exemplo, divide o valor entre todos os titulares da base de dados utilizada. No Brasil, a decisão depende das sete associações que compõem o ECAD e da aprovação do marco regulatório da IA, em discussão no Congresso Nacional. Este marco obriga os desenvolvedores de plataformas de IA a fornecerem as fontes de suas criações. Enquanto isso, a solução do ECAD é mais artesanal: “Temos um time interno, e um maestro que consegue identificar a métrica da música”, disse Isabel.
Don L discorda dessa abordagem, não por duvidar da capacidade dos músicos e maestros, mas pela natureza colaborativa de muitos estilos musicais. “O funk, por exemplo, é uma criação coletiva. Quem vai receber o dinheiro quando a máquina cria?”, questiona. Para ele, esse sistema beneficia os grandes artistas, e a IA, usada para criar música, é sempre plágio, um “plágio de diferentes fontes”, limitando a criatividade humana. Ele defende uma atitude para proibir, pelo menos por enquanto, o uso de músicas totalmente geradas por IA no Brasil, para evitar o desmonte da cadeia produtiva musical. Apesar disso, ele não é contra a IA em si, vendo-a como uma ferramenta criativa, mas ressalta que, no caso da música, os robôs estão fazendo o trabalho criativo humano.
Mas por que as lojas estão usando músicas geradas por IA? A personalização e o baixo custo são os principais atrativos. A “trilha do consumo” também é um fator importante: músicas relaxantes incentivam a permanência do cliente na loja, enquanto batidas mais agitadas estimulam a rotatividade. Luiz Augusto D’Urso, da ACSP, afirma que o recolhimento do ECAD não é o motivo para o uso de IA, pois o valor é baixo e já está incluso nas despesas do negócio. Ele destaca ainda que a IA pode reduzir custos com estúdios, músicos e outros profissionais, “hoje, com um simples comando, você resolve”. Ele defende o uso ético da IA, sem simular vozes ou burlar direitos autorais, e lembra que, atualmente, não há obrigação legal de pagar direitos autorais para músicas geradas por IA. Se o ECAD insistir no recolhimento, a questão dependerá do marco regulatório da IA.
Enquanto o marco regulatório não é aprovado, é preciso cautela. Artistas podem pedir a remoção (“takedown”) de músicas ou processar usuários de plataformas de IA por violação de direitos autorais. Casos assim já ocorreram em 2023, com obras de arte. É crucial ficar atento também à criação do prompt: usar a voz de um artista como referência, sem autorização, e ainda em uma letra com apologia ao crime, pode gerar processos por danos morais e até criminais.
O consenso geral é a necessidade de um marco regulatório para a IA no Brasil, garantindo transparência sobre a origem dos dados e definindo as obrigações de usuários e desenvolvedores. Até lá, a proteção dos direitos autorais em relação a músicas geradas por IA permanece um desafio complexo e sem respostas definitivas.
Fonte da Matéria: g1.globo.com