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Direita retorna ao poder na Bolívia após 20 anos: desgaste de Morales, crise econômica e discurso liberal explicam a vitória

Depois de duas décadas de governos de esquerda, a Bolívia se prepara para ter, pela primeira vez em muito tempo, um presidente de direita. O segundo turno das eleições presidenciais está marcado para 19 de outubro. Mas como a direita conseguiu essa reviravolta?

No primeiro turno, em 17 de agosto, o cenário já indicava a mudança. Rodrigo Paz Pereira (PDC), considerado de centro-direita, obteve 32% dos votos, seguido por Jorge “Tuto” Quiroga (Libre), da ala mais conservadora, com 26%. Dados oficiais da OEP (órgão eleitoral boliviano). A esquerda, por sua vez, ficou bem atrás. Eduardo del Castillo, candidato do MAS (Movimento ao Socialismo), partido de Evo Morales e Luis Arce, conseguiu apenas 3% dos votos. Andrónico Rodríguez, o esquerdista mais bem colocado, alcançou 8%.

Cinco pontos explicam esse surpreendente resultado:

1. **O desgaste de Evo Morales:** Evo Morales, líder sindical e primeiro presidente indígena da Bolívia, chegou ao poder em 2006 prometendo mudanças. No começo, foi um sucesso! Suas políticas de nacionalização do gás e distribuição de renda, impulsionadas pelo boom das commodities, renderam um crescimento médio anual de 5% entre 2006 e 2015 (dados do FMI), reduzindo a pobreza e consolidando sua popularidade. Reeleito em 2009 e 2014 após mudanças constitucionais que facilitaram sua permanência no poder, Morales sofreu um duro golpe em 2016 ao perder um referendo que poderia permitir candidaturas ilimitadas. Mesmo assim, disputou as eleições de 2019 com autorização da Suprema Corte e do Tribunal Superior Eleitoral, decisão que gerou muita polêmica. As eleições de 2019 foram marcadas por irregularidades apontadas pela OEA (Organização dos Estados Americanos), que detectou indícios de fraude. A consequência? Protestos nas ruas, pressão política e, finalmente, a renúncia de Morales, que deixou o país. “Aquele foi o fim de um ciclo de quase 14 anos”, afirma Paulo Velasco, professor de política internacional da UERJ. Até hoje, há quem diga que foi um golpe, outros falam em desgaste político e abuso de poder.

2. **A crise econômica:** A boa fase econômica não durou para sempre. A queda nos preços das commodities, somada à desaceleração na China e no Brasil, afetou a economia boliviana a partir de 2014. A inflação subiu, as reservas internacionais diminuíram, e o governo teve dificuldades para controlar os preços. A população sentiu o impacto no bolso. Para Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM, o ponto crítico foi a crise cambial, que elevou os custos de importação e insumos agrícolas, impactando diretamente o preço dos alimentos. “Na véspera do primeiro turno, a inflação anualizada estava na casa dos 25%, a maior em mais de 30 anos. Para um país onde a alimentação consome mais de 60% da renda familiar, isso foi devastador”, explica Trevisan. Esse cenário econômico desgastou a imagem do MAS e afetou seu apoio popular.

3. **A autofagia da esquerda:** Após a saída de Morales, Luis Arce, seu ex-ministro da Economia, assumiu a presidência com seu apoio. Mas a relação entre os dois azedou. Arce criticou as tentativas de Morales de interferir em seu governo. “Arce percebeu que Evo queria continuar no comando, dentro e fora do governo. Essa briga fragilizou o MAS e abriu brechas para a direita”, analisa Velasco. Nas eleições de 2025, a divisão ficou evidente: Arce não concorreu, e o candidato do MAS, Eduardo del Castillo, teve apenas 3% dos votos. Morales, por sua vez, pediu a anulação dos votos, um movimento que, segundo Trevisan, foi um “tiro no pé”, tirando a esquerda do segundo turno. “Se somarmos os 19% de votos nulos (pedido por Morales) aos 8% de Andrónico Rodríguez, a esquerda teria superado ‘Tuto’ Quiroga. A divisão custou caro”, destaca Trevisan. Foi, de fato, a maior derrota da esquerda em duas décadas.

4. **A onda conservadora na América do Sul:** A vitória da direita na Bolívia se encaixa em um contexto regional. A América Latina tem visto a ascensão de líderes conservadores, como Javier Milei na Argentina e Daniel Noboa no Equador. Além disso, a Bolívia tem um histórico de alternância de poder entre esquerda e direita a cada 20 anos, aproximadamente. “Em 2005, Evo Morales venceu após um longo período de governos de direita desgastados. A Bolívia parece ter ciclos bem definidos”, aponta Velasco. A “onda rosa” dos anos 2000 perdeu força diante de crises econômicas e insatisfação popular, abrindo espaço para uma “onda azul” conservadora.

5. **O discurso liberal como trunfo:** A direita boliviana não apenas se beneficiou do desgaste da esquerda, mas também soube se comunicar com o eleitorado. O discurso de redução de impostos e enxugamento do Estado atraiu eleitores insatisfeitos com o MAS. “A direita ofereceu mudanças na economia e na política externa, explorando o descontentamento com o governo e o fim da ‘onda rosa'”, explica Velasco. Paz Pereira e Quiroga, embora com propostas diferentes, conseguiram atrair públicos distintos. Quiroga, com experiência de governo, atraiu quem buscava estabilidade. Paz Pereira, com discurso mais inclusivo, conquistou apoio de quem sofreu com a crise. “Quiroga tem mais experiência e capacidade de influenciar o sistema, com apoio de redes políticas nacionais e internacionais. Paz Pereira, menos estruturado, se apresenta como outsider com uma abordagem mais social e boa relação com parceiros internacionais, como o Brasil”, conclui Velasco.

O resultado do primeiro turno, ilustrado no infográfico, mostra uma mudança significativa no cenário político boliviano. A direita está de volta, e o segundo turno promete ser decisivo para o futuro do país.

Fonte da Matéria: g1.globo.com