** Olha só, a imagem: Joén Suárez, Arturo Suárez, Wilken Flores e Andry Hernández na fileira de cima. Embaixo, da esquerda pra direita, Andy Perozo, Mervin Yamarte, Edwuar Hernández e Ringo Rincón. Fotos da Getty Images e AFP, via BBC. Uma cena que resume o pesadelo vivido por eles.
A única coisa que Arturo Suárez pediu aos guardas ao chegar ao Centro de Confinamento do Terrorismo (Cecot), em El Salvador, foram seus óculos. Quebrados numa surra, ele desmaiou. Dois guardas o arrastaram até o bloco 8, o inferno na terra. Entre março e julho de 2025, este bloco abrigou 252 migrantes venezuelanos deportados dos EUA pelo governo Trump.
Separados dos membros de gangues salvadorenhas – o público-alvo dessa prisão de segurança máxima, inaugurada em 2023 por Nayib Bukele – esses venezuelanos viveram um pesadelo. Bukele, com sua política de “linha dura” contra as gangues, reduziu drasticamente os homicídios em El Salvador, virando exemplo para outros países. Mas, sabe?, a medalha tem dois lados: inúmeras denúncias de violações de direitos humanos maculam essa imagem de sucesso.
Ao recobrar a consciência, tudo estava embaçado. Mas Arturo ouviu as palavras de Belarmino García, o diretor da prisão: “O famoso Trem de Aragua… Bem-vindos ao inferno, bem-vindos ao cemitério dos homens vivos. Daqui vocês só saem mortos. Aqui vocês estão na qualidade de condenados.” Um choque. O Trem de Aragua, surgido na Venezuela em 2014, é considerado pela Casa Branca uma “organização terrorista estrangeira”, com “milhares de membros infiltrados ilegalmente nos EUA”.
Confuso, sem enxergar direito, Arturo não entendia nada. Ele havia solicitado nos EUA o Status de Proteção Temporária (TPS), que protegia quase 600 mil venezuelanos durante o governo Biden. Mas o governo Trump, em 5 de fevereiro, acabou com essa proteção para os venezuelanos (e depois para outras seis nacionalidades).
Três dias depois de sua solicitação, ele foi preso na Carolina do Norte enquanto gravava um videoclipe. Edwuar Hernández, que trabalhava numa fábrica de tortilhas em Dallas, também lembra do discurso de boas-vindas do diretor: “Ele disse que nunca mais comeríamos frango nem carne. Que éramos do Trem de Aragua. Gritamos que éramos inocentes, e ele disse: ‘Não sou ninguém para julgá-los; quem vai julgar vocês é Deus’.”
O governo Trump justificou a deportação com base na suposta ligação dos migrantes ao Trem de Aragua. Na real, eles pensavam que iam para a Venezuela. Foram informados disso, afirmam. Mas desembarcaram em El Salvador, algemados. Hernández conta que foram jogados do avião a pontapés e levados para o Cecot. Lá, rasparam suas cabeças, os obrigaram a vestir uniformes brancos e ficaram lá por cerca de quatro meses. Em 18 de julho, após um acordo entre El Salvador, Venezuela e EUA, os 252 venezuelanos foram finalmente repatriados.
A BBC News Mundo conversou com oito deles. Edwuar Hernández (23 anos), Mervin Yamarte (29), Andy Perozo (30) e Ringo Rincón (39) falaram juntos em Los Pescadores, Zulia, Venezuela. Eles emigraram e foram detidos juntos no Texas. Também conversamos com Andry Hernández (31), em Táchira; Arturo Suárez (34) e Joén Suárez (23), em Caracas; e Wilken Flores (24), em Guatire. Alguns entraram legalmente nos EUA, outros não. Todos foram acusados de crimes, embora o governo americano reconheça que muitos não tinham antecedentes criminais. A BBC questionou o Departamento de Segurança Nacional (DHS) sobre as evidências de ligação com o Trem de Aragua, mas não obteve resposta. Também não conseguimos verificar independentemente seus antecedentes. Joén Suárez, por exemplo, foi acusado de dirigir irregularmente no Colorado em 2024, mas o processo foi arquivado.
Todos negam qualquer ligação com a gangue e afirmam que não tiveram chance de defesa. A chegada ao Cecot foi marcada por abusos, relatam. Mervin Yamarte, trabalhador da construção civil, descreve: “Ao chegar, nu, eles me bateram com uma tábua, nas costelas… não me deixaram nem colocar a roupa. ‘Anda logo, seu bosta!’, eles diziam. Como posso vestir minhas roupas se estão me batendo?”
A BBC News Mundo solicitou comentários à Presidência, ao Ministério da Segurança de El Salvador e à direção do Cecot, mas não recebeu resposta. Bukele, no passado, negou qualquer violação de direitos. E o relatório anual de direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA afirma que em El Salvador “não há relatos confiáveis de abusos significativos”, uma mudança radical em relação a relatórios anteriores.
Andry Hernández, maquiador que pediu asilo e foi detido imediatamente, descreve o Cecot como “uma cidade completa, extremamente fria”. Sua descrição coincide com uma investigação da BBC News Mundo de julho de 2023. Apesar de não terem contato com gangues salvadorenhas, eles tiveram contato com outros presos, que os ajudavam. Vestidos de amarelo, eram chamados de “minions”. O programa “Zero Ócio” de Bukele utiliza presos comuns em trabalhos. Celas solitárias, chamadas de “a ilha”, eram usadas para tortura. “Eles dizem: ‘Cala a boca, merda; cala a boca, seu bosta; cala a boca, filho da puta’. Te fazem ajoelhar, pisam em você, dão tapas, socos na orelha, te chutam”, relata Joén Suárez, que trabalhou como pintor e entregador em Nova York.
O Cecot abriga muitos membros de gangues presos antes de março de 2022, quando foi declarado o Estado de exceção, que, segundo organizações de direitos humanos, não garante o devido processo legal. Trump usou a Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798 para as deportações, ignorando uma ordem judicial de 15 de março que suspendeu as transferências.
Os oito acreditam ter sido presos por tatuagens associadas ao Trem de Aragua. Andry Hernández, por exemplo, foi considerado suspeito por causa de duas coroas tatuadas nos punhos.
A Casa Branca respondeu à BBC que o governo Trump agradece a colaboração com Bukele para “expulsar os piores imigrantes ilegais, violentos e criminosos”. Dos oito, apenas dois tinham ordens de deportação antes de serem enviados a El Salvador. Os outros estavam em processo de solicitação de asilo ou TPS. Todos denunciam a falta de defesa legal.
Ringo Rincón, trabalhador da construção civil, lembra a fala do guarda: “Aqui não há advogados, não há telefonemas, não há juízes, aqui não há nada. Vocês não têm mais nada”. Sem contato com familiares ou advogados. As celas eram precárias, com vasos sanitários descobertos, cheiro horrível de esgoto, sem ventilação e com cinco luzes acesas o tempo todo. Em celas para 80 pessoas, havia entre 10 e 19 detentos. Nas alas das gangues, mais de 100.
Dormiam em beliches de metal, sem lençóis. “Na cama ao nosso lado, escrevíamos: ‘Família, saudade, amo vocês'”, diz Andry. Um guarda, o “líder do bloco”, fazia barulho para impedi-los de dormir. Sem ar livre, sem relógios, o dia começava às 4h com a “contagem”. Banhos coletivos, com dois baldes para 19 pessoas. Pouca higiene, com pasta de dente em poucas ocasiões. Precisavam de permissão para ir ao banheiro.
A comida: arroz, feijão e tortilhas, sem talheres. No começo, jogavam a comida fora, mas foram ameaçados. Criaram jogos com dados de massa de tortilha. Conversas eram proibidas, resultando em punições. “Eles queriam que falássemos por sinais”, diz Mervin.
Recebiam nove comprimidos por semana para prevenir tuberculose. Hernández e Perozo foram espancados diariamente, alegando que eram levados ao médico após as agressões. Protestos resultaram em mais agressões. Uma greve de fome e de sangue foi feita, com presos se cortando e escrevendo mensagens com o próprio sangue.
Arturo Suárez ficou mais de dez vezes na “ilha”, muitas vezes por cantar. Compôs duas canções no Cecot.
Fonte da Matéria: g1.globo.com