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Carmen Miranda: A Portuguesa que se Tornou o Maior Ícone Brasileiro no Mundo

A morte de Carmen Miranda, em 5 de agosto de 1955, causou um impacto tão grande que pareceu um Carnaval fora de época no Rio de Janeiro, cidade que ela amava de paixão. A notícia, veiculada pelo Repórter Esso na Rádio Nacional, se espalhou rapidamente. Em seguida, todas as emissoras brasileiras começaram a tocar seus sucessos – “Taí”, “Disseram que voltei americanizada”, “O que é que a bahiana tem?” – transformando a tristeza nacional numa espécie de lamento musical.

Ruy Castro, em sua biografia definitiva, “Carmen — A Vida de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX” (Companhia das Letras, 2005), descreve como essas músicas, revividas naquele agosto, funcionaram como uma senha para um carnaval antecipado, uma explosão de alegria e saudade. Segundo seu desejo, Carmen foi sepultada no Rio de Janeiro, no Cemitério São João Batista. Ana Rita Mendonça, em “Carmen Miranda foi a Washington” (Record, 1999), relata que 12 igrejas cariocas realizaram missas de sétimo dia em sua homenagem.

O caixão só chegou ao Brasil na semana seguinte. Na noite de 12 para 13 de agosto, um velório público foi realizado na Câmara dos Vereadores. Castro relata a cena: “Uns se espantaram com Carmen vestida de vermelho, maquiada e penteada; outros acharam lindo – em Hollywood, até a morte era em Technicolor!”. O Rio parou. Multidões, vindas de outras cidades, se aglomeraram em silêncio diante do caixão. Nem o frio da madrugada espantou os admiradores.

Na escadaria da Câmara, membros da Velha Guarda, como Pixinguinha, Donga e João da Baiana, tentaram tocar “Taí” em homenagem à cantora. A emoção foi tanta que as gargantas se fecharam, os instrumentos silenciaram. No fim, mais de 50 mil vozes entoaram a marchinha. O cortejo fúnebre, num carro de bombeiros, foi acompanhado por um caminhão de som tocando seus discos, um último adeus em ritmo de festa, como ela sempre gostava.

Uma Carreira Meteórica:

Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em Marco de Canaveses, Portugal, em fevereiro de 1909. A família emigrou para o Brasil quando ela era ainda um bebê, chegando ao Rio de Janeiro com menos de um ano. Filha de uma família com seis irmãos, Carmen estudou em colégio de freiras e aos 14 anos começou a trabalhar, numa loja de gravatas e depois numa chapelaria. Ela sempre gostou de cantar e era elogiada por sua voz. Em 1928, foi apresentada à Rádio Sociedade Professor Roquete Pinto, dando início a sua trajetória. No ano seguinte, gravou seu primeiro samba, “Não Vá Sim’bora”, de Josué de Barros.

A partir daí, foi uma escalada meteórica. Em 1930, “Pra Você Gostar de Mim” (também conhecida como “Taí”) vendeu 35 mil cópias no primeiro ano, um recorde que a consagrou como “a melhor cantora do Brasil”. Carmen se tornou uma das estrelas da era de ouro do rádio brasileiro, participando também dos primeiros musicais do cinema nacional. Após participações em filmes como “Alô, Alô, Brasil” (1935), ela se tornou uma estrela de primeira grandeza.

A Baiana Estilizada Conquista os EUA:

Em 1939, “Banana da Terra” apresentou a Carmen Miranda mais icônica: a baiana estilizada, com o famoso figurino e frutas na cabeça, interpretando “O que é que a bahiana tem?”, de Dorival Caymmi. O sucesso do filme impulsionou a carreira de ambos. Carmen, uma portuguesa criada no Rio, adotou a imagem da baiana em suas apresentações. Foi justamente com esse figurino que ela se apresentou no Cassino da Urca, pouco antes do Carnaval de 1939, chamando a atenção do produtor americano Lee Shubert, que a contratou para a Broadway.

Nos EUA, Carmen fez um sucesso estrondoso com seu visual exótico. No entanto, alguns intelectuais brasileiros criticaram a imagem, considerando-a um estereótipo equivocado do Brasil.

Gisele Jordão, coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM, afirma: “Carmen foi uma das primeiras artistas a representar o Brasil no exterior de forma icônica, antes mesmo de Pelé ou da bossa nova. A imagem do Brasil alegre, exótico e musical tem muito da marca que ela deixou. Essa projeção foi absorvida pela publicidade, turismo e diplomacia cultural, criando um ‘Brasil tipo exportação’ que ainda hoje molda o imaginário internacional.”

Soft Power e a Segunda Guerra:

A política de Boa Vizinhança entre os EUA e a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial favoreceu a ascensão internacional de Carmen Miranda. Ou talvez o contrário: ela já era um sucesso antes da política de aproximação. Alberto Tsuyoshi Ikeda, musicólogo e professor aposentado da Unesp, destaca: “Ela já tinha uns dez anos de sucesso no Brasil quando foi para os EUA. Conquistou o mundo com a verve artística, a comunicabilidade, a extroversão. Era uma mulher notável.”

A partir daí, Carmen estrelou vários filmes, ganhando projeção internacional. Seu auge no cinema ocorreu durante a Segunda Guerra, com oito dos seus 14 filmes estrelados nesse período. Suas personagens, entretanto, eram geralmente latino-americanas, de forma genérica, e não especificamente brasileiras.

Ela se estabeleceu nos EUA, morando em Beverly Hills. Ficou 14 anos sem pisar no Brasil, retornando em férias em dezembro de 1954. Um médico diagnosticou dependência química (barbitúricos e álcool), e ela fez um tratamento de quatro meses no Copacabana Palace. Voltou aos EUA em abril de 1955, fez uma turnê por Las Vegas e Cuba, e recebeu uma proposta da CBS para um programa de TV. Participou do programa de Jimmy Durante na NBC em 4 de agosto de 1955. Foi encontrada morta em sua casa na manhã seguinte, vítima de ataque cardíaco.

Símbolo da Brasilidade: Uma Ambiguidade?

Para Jordão, Carmen se tornou um símbolo da brasilidade por ter encarnado, de forma performática e midiática, um Brasil que o próprio Brasil estava tentando entender e vender. Renata Couto, pesquisadora da Unigranrio Afya, destaca o pioneirismo e comportamento revolucionário de Carmen, que não se encaixava nos padrões tradicionais de mulher da época.

Embora portuguesa de nascimento, Carmen cresceu no Brasil e construiu sua identidade artística aqui. Ao incorporar elementos da cultura popular brasileira, especialmente a música afro-brasileira e os trajes das baianas, ela criou uma tradução estilizada do que se queria projetar como “alma brasileira”. Essa imagem foi construída por vários fatores: o rádio, a indústria cultural, o Estado Novo, o cinema hollywoodiano e a política de Boa Vizinhança.

Carmen moldou sua persona com códigos reconhecíveis: tropicalidade, sensualidade, ritmo do samba, mas sempre com uma estética amplificada, quase caricatural. Era um Brasil lúdico, alto astral, popular e festivo, um Brasil performado para o mercado internacional. Sua imagem visual, com turbantes, frutas e tecidos exuberantes, resulta de escolhas estéticas que dialogavam com o imaginário externo e a cultura visual interna.

Couto argumenta que Carmen vendia uma imagem da América Latina, e não apenas do Brasil. A imagem de Carmen como “Brasil tipo exportação” é, segundo ela, uma construção mais recente.

A colaboração com Dorival Caymmi foi fundamental na criação da personagem Carmen Miranda. Caymmi orientou a cantora até no gestual para o filme de 1939. Para Jordão, houve uma “dinâmica de tradução performática”. Carmen potencializou a letra de Caymmi, exagerando nas cores, mas a música já descrevia um Brasil tropical. Enquanto Caymmi construía uma Bahia musicalizada com melancolia, espiritualidade e identidade negra, Carmen devolvia essa imagem sob a lente do espetáculo: colorida, exagerada e teatral. Carmen foi uma mulher à frente de seu tempo, carismática, irreverente e pioneira, mas também um corpo a serviço de estereótipos e interesses geopolíticos. Ao performar a baiana em Hollywood, ela transformou um símbolo de resistência negra em um emblema de uma brasilidade exportável, palatável ao gosto estrangeiro, mas distante de suas raízes afro-brasileiras.

Fonte da Matéria: g1.globo.com