Pouco tempo depois do fim da Guerra Civil, lá pelos idos de 1867, várias cidades americanas começaram a aprovar leis esquisitas, proibindo a presença de “doentes, mutilados ou deformados” nas ruas. Imagina só! Parece até piada, né? Mas não era. A frase do Oscar Wilde, “É melhor ser bonito do que bom”, ganha um tom assustador quando a gente pensa nesse período da história americana.
Na segunda metade do século XIX, várias cidades e até um estado inteiro aprovaram leis que, acredite, criminalizavam certas características físicas – ou a falta delas. Essas leis, que previam multas e prisão, ficaram conhecidas como “leis da feiura”. Um absurdo, não é?
O objetivo? Manter os pobres e indigentes longe dos olhos, principalmente das cidades que estavam crescendo rápido. Susan Schweik, reitora de artes e humanidades da Universidade de Berkeley, e autora do livro “The Ugly Laws: Disability in Public”, explicou à BBC Mundo que essas leis eram decretos municipais que proibiam a presença de pessoas com determinadas características físicas em locais públicos.
São Francisco foi a primeira, em 1867. A lei lá dizia que era crime qualquer “pessoa doente, mutilada ou deformada a ponto de se tornar um objeto nojento ou repulsivo” vista em ruas, praças e parques. Aí, outras cidades, como Reno (Nevada), Portland (Oregon), Lincoln (Nebraska), Columbus (Ohio), Chicago (Illinois), Nova Orleans (Louisiana), e até o estado da Pensilvânia, copiaram essa ideia bizarra. Em Chicago, em 1916, o jornal Tribune noticiou que a intenção era “remover a feiura das ruas”. Schweik comenta que, na real, a “feiura” eram as pessoas, não os tijolos espalhados pelas ruas.
A Guerra Civil, com seus milhares de feridos e mutilados, deixou um rastro de sofrimento. Apesar disso, muitas dessas leis excluíam até mesmo os veteranos de guerra. Algumas pessoas, na época, tentavam justificar essas medidas como uma forma de controlar doenças e proteger a saúde pública. Mas olha só que pensamento doentio: existia a crença de que, se uma mulher grávida visse alguém com deficiência, seu bebê poderia nascer doente! Isso tá escrito em um texto de 1906, publicado pelo clérigo americano Charles Henderson, que defendia o isolamento dos “indesejáveis”. Ele dizia que a visão de um epiléptico em convulsão era aterrorizante e causava aversão.
Schweik acredita que não foi coincidência essas leis terem surgido dois anos após o fim da Guerra Civil (1861-1865). São Francisco, em plena recuperação da corrida do ouro, vivia um crescimento urbano explosivo e uma grande imigração, principalmente da China. As ruas estavam cheias de gente em situação de vulnerabilidade.
E o que é ainda mais chocante: muitas dessas leis tinham o apoio de organizações de caridade! Além de proibir a mendicância, elas impediam que pessoas com deficiência trabalhassem como vendedores ambulantes ou artistas de rua. Raquel Mangual, pesquisadora do Instituto de Deficiências da Temple University, disse à BBC Mundo que essas leis serviam para institucionalizar pessoas consideradas “repugnantes”. Era uma prisão perpétua disfarçada, segundo Schweik.
Apesar de parecerem voltadas contra a “feiura”, as leis tinham outro alvo: os pobres. Mangual e Guy Caruso, especialista em deficiências intelectuais e de desenvolvimento da Temple University, concordam: as leis visavam tirar das ruas pessoas com deficiência, sem-teto ou com doenças como epilepsia. Elas eram pobres, precisavam mendigar, e as pessoas as achavam repulsivas.
As penalidades? Multas e prisão. Em Chicago, por exemplo, a multa era de US$ 1 por infração (mais de R$ 100 hoje). Não só moradores de rua eram afetados, mas também quem vendia na rua ou fazia arte de rua. Schweik cita um caso em Cleveland, em 1910, de um homem que vendia jornais e foi proibido de trabalhar porque era “aleijado”. Em Portland, uma mulher que vendia jornais foi considerada uma “visão terrível demais para as crianças” e teve que ir embora.
O número exato de pessoas afetadas é desconhecido, pois não havia registros. Mas o impacto foi enorme. Schweik afirma que essas leis se conectavam a outras leis de segregação racial e à legislação eugênica que permitia a esterilização compulsória de pessoas com deficiência. Ela destaca que Franklin Delano Roosevelt (FDR), que ficou paralisado por causa da poliomielite, não era o alvo principal, mas sim os pobres.
As “leis da feiura” foram perdendo força no século XX, mas só foram revogadas na década de 1970, graças à luta do movimento pelos direitos das pessoas com deficiência. Um caso em Omaha, Nebraska, em 1970, chamou atenção: um policial queria prender um sem-teto usando uma dessas leis, mas um juiz rejeitou. A história foi publicada com a manchete “Lei da mendicância só pune os feios”, dando o nome popular às leis, apesar de “feio” não aparecer nelas.
A Lei dos Americanos com Deficiência (ADA), de 1990, tornou essas leis ineficazes. Mas, segundo Mangual e Schweik, o preconceito continua. A cultura dessas leis ainda existe, e até mesmo Donald Trump, com suas campanhas contra sem-teto na década de 1990, contribuiu para isso. Hoje, as cidades usam métodos mais sutis para afastar quem elas consideram “inestético”, como a instalação de bancos e móveis de rua que impedem pessoas de dormir ou pedir esmola. A luta pela inclusão continua.
Fonte da Matéria: g1.globo.com