A imposição de tarifas elevadas pelo governo Trump ao Brasil, em 2023, não é um fato isolado. A história mostra que os Estados Unidos já tentaram influenciar a política brasileira de maneiras bem mais diretas. Sabe? Em 1964, a tensão política quase resultou numa intervenção militar americana em solo brasileiro.
A situação era tensa. Um cenário político polarizado, e a iminência do golpe militar que derrubaria João Goulart (1919-1976), prepararam o terreno para uma ação americana sem precedentes. A trama, amplamente discutida entre autoridades americanas, a Embaixada dos EUA no Brasil e os conspiradores golpistas, chegou ao ápice em uma reunião da cúpula militar americana na tarde do dia 31 de março de 1964, horas antes do golpe.
O historiador Carlos Fico, da UFRJ, detalha o plano no seu livro “O Grande Irmão – Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo: O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira”. Olha só o que ele descreve: “A operação envolveu um porta-aviões, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros (dois com mísseis teleguiados) carregados com cerca de 100 toneladas de armas (incluindo gás lacrimogêneo CS Agent) e quatro navios-petroleiros com combustível, prevendo um possível boicote do abastecimento pelas forças legalistas.”
Batizada de Operação Brother Sam, a estratégia foi negociada a toque de caixa nos momentos finais do último governo democrático antes da ditadura. As forças americanas partiriam da Virgínia às 7h do dia 1º de abril, prevendo chegada a Santos (SP) entre os dias 10 e 14 de abril. Mas, acredite, elas nunca chegaram.
Humberto Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, avisou os americanos em 1º de abril que não precisava do apoio logístico. Pronto! A Brother Sam começou a ser desmantelada, como afirma Fico. Apenas dois dias depois, a força-tarefa recebeu ordens de retorno aos EUA.
A historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora da Unesp e professora do Sesi, explica à BBC News Brasil: “Não era uma ameaça de um país soberano a outro, mas apoio dos EUA para garantir que seus aliados no Brasil tomassem o poder”. Ela destaca o contexto de escalada do discurso anticomunista nos EUA.
O medo do comunismo era o motor da ação americana. Militares americanos acreditavam que as políticas de Goulart significavam alinhamento ao bloco comunista liderado pela União Soviética, no auge da Guerra Fria. Segundo Fico, o planejamento dessa intervenção começou ainda no governo de John F. Kennedy (1917-1963). Ele encontrou uma versão datilografada do plano de 11 de dezembro de 1963, menos de um mês após o assassinato de Kennedy. Isso indica que o plano foi iniciado na gestão de Kennedy.
A preparação do documento foi liderada pelo embaixador Abraham Lincoln Gordon (1913-2009), que serviu no Brasil entre 1961 e 1966. O texto era direcionado a McGeorge Bundy (1919-1996), conselheiro de Segurança Nacional americano. Em 2001, Gordon admitiu que, nos últimos dias de março de 1964, Washington planejava fornecer armas e munições para impedir um governo de esquerda no Brasil.
Fico analisa: “Não é fácil ver com simpatia um embaixador de uma potência estrangeira com pretensões intervencionistas. Mas não se deve demonizar Gordon…”. Ele contextualiza que, na Guerra Fria, o embaixador agiu de acordo com suas convicções de “cold warrior”, buscando servir seu país.
Toda a operação foi planejada por meio de telegramas entre os EUA e o Brasil, documentos confidenciais revelados apenas nos anos 1970, graças à pesquisa da historiadora americana Phyllis R. Parker. Ela comprovou que Washington monitorava a política brasileira desde 1961. Fico destaca que o plano de contingência não foi improvisado, demonstrando preocupação com “qualquer tentativa de mudar significativamente o regime brasileiro, por violência ou não”. A embaixada, clandestinamente, manteria contato com conspiradores brasileiros para exercer influência. Tudo baseado no temor de um Brasil comunista.
Para os americanos, os militares brasileiros eram a única força capaz de deter a ameaça da esquerda. Gordon acreditava que Goulart implantaria uma “ditadura peronista”, posteriormente dominada por comunistas. O plano previa a formação de um novo governo pela direita golpista, capaz de controlar o país e obter reconhecimento internacional. Naquele mundo bipolar, a influência era crucial.
O historiador Vitor Soares, do podcast “História em Meia Hora”, argumenta que o objetivo principal não era evitar o comunismo, que não era uma ameaça real no Brasil. Ele classifica Goulart como reformista, com propostas de reforma agrária, educação e ampliação do voto – ideias comuns em democracias, mas vistas como perigosas pelos EUA no contexto da Guerra Fria.
O jurista e cientista político Enrique Natalino, do Cebrap, reforça que a “ameaça comunista” era uma construção ideológica, interna e externa, mais do que uma realidade que justificasse uma intervenção militar estrangeira. A operação Brother Sam não envolveu uma intervenção terrestre direta, mas sim uma estrutura de apoio logístico e político, com militares e civis atuando clandestinamente para influenciar o cenário político brasileiro, com apoio do Departamento de Estado e da CIA. O poder militar se restringiu ao planejamento, inteligência e assistência logística.
O desembarque de tropas americanas só ocorreria com evidência de “intervenção soviética ou cubana”. Phyllis R. Parker, em “Brazil and the quiet intervention, 1964”, descreve a visão da Embaixada americana de um possível confronto entre Goulart e apoiadores de esquerda contra a liderança militar alinhada a setores conservadores. De um lado, trabalhadores, estudantes, camponeses e sargentos; do outro, empresários, latifundiários e centristas que viam Goulart como ineficaz ou perigoso. Os militares brasileiros eram aliados tradicionais dos EUA, com um inimigo comum: o comunismo.
Para a socióloga Mayra Goulart, da UFRJ, há uma convergência ideológica histórica entre elites antipopulares brasileiras e latino-americanas e os governos dos EUA. O anticomunismo encobre a oposição a governos que priorizam as classes populares.
Pouco antes do golpe, Gordon enviou um telegrama ultrassecreto ao Departamento de Estado, reafirmando suas teses sobre Goulart planejando um golpe com o PCB e a “esquerda revolucionária radical”, levando o Brasil ao comunismo e a uma guerra civil. O conteúdo foi revelado integralmente em 2004.
O principal contato americano era o general José Pinheiro de Ulhoa Cintra, encarregado de conseguir armas e combustível no Brasil. Considerado “um dos grandes revolucionários do Exército” por Castelo Branco e “violento” por Costa e Silva, Cintra era um conspirador que “odiava Goulart”. Ele era autor do manifesto “Lealdade ao Exército”.
Gordon coordenou a redação do “Plano de Defesa Interna para o Brasil”, avaliando a segurança do país em relação a ameaças internas aos interesses americanos. O plano considerava o governo Goulart problemático. Gordon sugeriu uma entrega clandestina de armas de origem não americana aos apoiadores do golpe, para evitar acusações de intervencionismo. O plano previa até um submarino descarregando armas em um ponto isolado da costa paulista. A mobilização das “forças amistosas” seria suficiente, mas a retaguarda precisava estar preparada para uma resistência prolongada ou contraofensiva soviética. O esquadrão americano seria uma demonstração de força.
Soares afirma que o apoio americano ao golpe foi logístico, militar e direto, mas não houve intervenção militar porque os conspiradores brasileiros conseguiram. O imperialismo americano estava presente e operando.
Após Castelo Branco avisar que não precisava de ajuda, a questão para os EUA passou a ser: “quem paga?”. Dean Rusk (1909-1994), secretário de Estado, demonstrou preocupação com o custo de 2,3 milhões de dólares. Se a Brother Sam fosse desmobilizada, o Departamento de Defesa não arcaria com a despesa, talvez pedindo reembolso ao governo brasileiro. Fico comenta: “A Operação Brother Sam, iniciada por avaliações quase irracionais de Gordon, terminava reduzida à racionalidade do ‘quem paga?'”.
Mayra Goulart compara as tarifas de Trump com o envio das forças americanas em 1964, como os EUA atuando como potência hemisférica, interferindo em
Fonte da Matéria: g1.globo.com