Em As Neves, uma pequena vila na Galícia, Espanha, com menos de 4 mil habitantes, acontece a cada 29 de julho uma procissão singular: a Romaria de Santa Marta de Ribarteme, também conhecida como “a romaria dos caixões”. Imagina só: pessoas vivas dentro de caixões, carregadas nos ombros durante uma procissão religiosa! Isso mesmo! É uma tradição secular que mistura fé fervorosa com um toque de… estranheza, digamos assim.
Em 2019, Jorge Contiño, um ex-alcoólatra que quase morreu em decorrência de seu vício, participou da procissão. “Quando você entra no caixão, a primeira coisa que pensa é que poderia estar morto de verdade. Três meses antes, eu poderia ter estado ali mesmo”, confessa Contiño à BBC News Mundo. Na época, ele pesava apenas 32 kg, apesar de medir 1,83 m! Seu fígado estava completamente debilitado. Depois de uma promessa à Santa Marta, ele se recuperou e, olha só, dois anos depois, ele mesmo está organizando o evento!
A tradição é antiga, com registros escritos desde pelo menos 1700. Só foi interrompida por três anos, durante a pandemia de Covid-19. Para o prefeito de As Neves, José Manuel Alfonso, “é uma das peregrinações mais importantes da Galícia”. A procissão atrai cerca de 5 mil pessoas todo ano, vindas não só da região, mas também de outros pontos da Espanha e até do exterior.
A festa, que dura vários dias, é uma mistura de religiosidade e elementos pagãos. Começa alguns dias antes, com futebol, churrasco… uma verdadeira festa popular! Há três anos, o evento foi declarado de Interesse Turístico da Galícia. E claro, não pode faltar a culinária local, com o delicioso polvo à feira, um prato típico galego. “Muita gente vem por curiosidade”, explica Alfonso. “Mas para nós, de As Neves, é um orgulho imenso ver tanta gente participando, é algo muito nosso, muito profundo, que fazemos desde crianças.”
O dia principal é 29 de julho, dia de Santa Marta. A missa acontece na paróquia de São José de Ribarteme, mas geralmente numa tenda ao lado para acomodar mais fiéis. Ali, os caixões, forrados de cetim, esperam pelos “ofertados”. São pessoas que passaram por momentos críticos de saúde, ou tiveram entes queridos nessa situação, e oferecem-se à santa em agradecimento. Eles “alugam” os caixões da igreja, fazendo uma doação, ou podem trazer o seu próprio. Alguns contratam meninos da cidade para carregá-los, mas a maioria conta com amigos e familiares. A procissão dura duas horas, caminhando lentamente, e se o sol estiver forte, aí sim… fica complicado!
Alguns “ofertados” fazem a procissão dentro do caixão, outros acompanham a imagem da santa de joelhos, usando joelheiras para se proteger. Cotiño, por exemplo, já carregou seu tio duas vezes, um grande esforço! Este ano, um “ofertado” vinha de Londres, após ter perdido a procissão no ano anterior.
A procissão é conduzida pela imagem de Santa Marta, seguida pelos “ofertados” e peregrinos, todos carregando velas. Uma banda de música acompanha o cortejo em silêncio. Os “ofertados” trazem também “romeiros cantores”, que entoam cânticos ancestrais, pedindo a intercessão da santa. São canções antigas, um verdadeiro tesouro cultural, com versos como: “Virgem Santa Marta, rainha da glória, todo aquele que se oferece sai com vitória”. Esses cantores, em trios de duas mulheres e um homem, cantam no estilo alalá, uma das formas mais primitivas do folclore galego.
Antigamente, a imagem da santa era protegida pela Guarda Civil, pois os devotos faziam oferendas em dinheiro – chegando a 2 milhões de pesetas (cerca de R$ 820 mil em valores atuais)! Hoje, as doações são feitas em uma caixa, e os devotos também oferecem objetos como bonecos de cera e animais (carneiros, galinhas, bezerros…), que são leiloados em benefício da igreja.
A procissão de Santa Marta de Ribarteme é uma experiência inesquecível. Para Contiño, a sensação de estar dentro do caixão foi surreal, uma proximidade com a morte que jamais esquecerá. “Quando você sai, fica impressionado. É uma sensação irreal, muito difícil de explicar.” E é uma experiência que, sem dúvida, marca a vida de todos que participam ou presenciam essa singular procissão.
Fonte da Matéria: g1.globo.com