A minissérie “A História Distorcida de Amanda Knox” (The Twisted Tale of Amanda Knox), lançada em agosto de 2024 no Hulu (EUA) e Disney+ (internacional), revive o caso que chocou o mundo: a condenação e posterior absolvição de Amanda Knox pelo assassinato de sua colega de quarto, Meredith Kercher. Dezessete anos após o crime, ocorrido em Perugia, Itália, em 2007, a série de oito episódios, idealizada pela própria Amanda, reabre feridas e gera controvérsias.
A irmã de Meredith, Stephanie Kercher, expressou sua frustração ao jornal britânico The Guardian, dizendo que a família já sofreu demais e não compreende o propósito da série. Essa sensação, na real, é compartilhada por muitos. Afinal, qual o sentido de mais uma produção sobre um caso tão complexo e doloroso?
A resposta, segundo Amanda, é a busca pela verdade. Ela, seu então namorado Raffaele Sollecito e Rudy Guede foram inicialmente condenados pelo assassinato da estudante britânica de 21 anos. Knox passou quase quatro anos presa, sempre clamando por sua inocência. Em 2011, ela e Sollecito foram libertados após a anulação de suas condenações. Mas a saga judicial continuou: uma nova condenação em 2014 e, finalmente, a absolvição definitiva pela Suprema Corte italiana em 2015. Guede, por sua vez, cumpriu 13 dos 16 anos de sua pena, sendo libertado em 2021.
A série, protagonizada por Grace Van Patten como Amanda, mostra a americana em meio a um turbilhão midiático, cercada por jornalistas e policiais. Olha só, a justiça italiana reconheceu “falhas impressionantes” na investigação, e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em 2019, condenou a Itália a pagar € 18.400 (cerca de R$ 116.600 na época) a Knox por irregularidades no interrogatório. A mídia, implacável, a pintou como uma “mulher promíscua”, a “Foxy Knoxy” dos tabloides, alimentando um julgamento público implacável. A acusação chegou a sugerir que Knox teria orquestrado a morte de Kercher com Sollecito e Guede em uma orgia com rituais satânicos que deu errado. No entanto, a absolvição final se deu, em grande parte, pela fragilidade das provas de DNA.
Mas a série, apesar da boa atuação de Van Patten, apresenta problemas. O tom é inconsistente, ora leve e quase cômico, ora dramático. Há momentos de realismo mágico, inspirados no filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” – que Knox e Sollecito disseram ter assistido na noite do crime – e cenas exageradas, como uma gangue de ursinhos de pelúcia aplaudindo Knox em uma apresentação de palhaça na infância. A showrunner, KJ Steinberg, defende que a homenagem a Amélie serviu para mostrar Amanda antes da versão distorcida criada pela mídia. Mas, tipo assim, a série cai em clichês, de vozes que somem e reaparecem em interrogatórios a metáforas forçadas.
Outro ponto polêmico: a narração irreverente em tom millennial de Van Patten, que lembra produções recentes como “Inventando Anna” e “Vinagre de Maçã”. Isso, na minha opinião, minimiza a gravidade do caso. Afinal, duas famílias sofreram profundamente com a tragédia.
Amanda Knox, depois de dois livros de memórias (“Esperando para ser ouvida” e “Livre”), um documentário da Netflix e vários podcasts (incluindo o “Hard Knox”), busca, segundo ela, reapropriar sua narrativa. Essa onda de “reapropriação”, vista em produções sobre Britney Spears, Pamela Anderson, Monica Lewinsky e Tonya Harding, leva a questionamentos éticos. Jessica Bennett, do New York Times, pergunta: até que ponto a ficcionalização se torna tão ruim quanto o evento real? Lewinsky, aliás, é produtora executiva da série, assim como a própria Knox.
Knox afirma que a série visa mostrar que o verdadeiro assassino é Rudy Guede, que teve um julgamento menos midiático. Em entrevista à Newsweek, ela disse que a atenção se desviou da vítima e da verdade sobre o crime. Mas, ao focar na experiência de Knox, a série acaba relegando a morte de Kercher a um segundo plano. Os dois últimos episódios, excessivamente autocentrados, exemplificam isso. Um encontro dramatizado entre Knox e o promotor Giuliano Mignini, que ocorreu em Perugia em 2022, termina com Mignini chorando e clamando aos céus. Até mesmo a homenagem final a Kercher, uma montagem de vídeos caseiros, é eclipsada pela narração de Knox, que fala sobre sua “sorte” e seu luto.
A recusa da família Kercher em participar da produção deveria ter gerado uma reflexão sobre o impacto na outra vítima, igualmente injustiçada. No fim das contas, “A História Distorcida de Amanda Knox” deixa mais perguntas do que respostas, levantando um debate sobre justiça, mídia e a responsabilidade ética na produção de conteúdo baseado em tragédias reais.
Fonte da Matéria: g1.globo.com