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A armadilha da “machosfera”: como algoritmos e “gurus” manipulam jovens a odiarem mulheres

O que leva um homem a odiar mulheres? Como rapazes adolescentes são atraídos para o mundo tóxico da “machosfera”, um submundo que propaga misoginia desenfreada? O jornalista e escritor britânico James Bloodworth mergulhou fundo nessa questão por meses, entrevistando “gurus” que prometem ensinar homens a controlar mulheres e participando de conferências de comunidades “pílula vermelha”. Sua jornada resultou no livro “Lost Boys: A Personal Journey Through the Manosphere” (“Garotos Perdidos: Uma Jornada Pessoal Pela Machosfera”, em tradução livre).

Incels, redpills e outros termos: uma imersão na cultura do ódio às mulheres. Em uma conferência nos EUA, Bloodworth testemunhou homens desembolsando US$ 10 mil (cerca de R$ 55 mil na época) por palestras que prometiam transformá-los no “homem que outros homens querem ser”. Mas a descoberta mais impactante? Ele nem precisou se esforçar tanto.

Os algoritmos das redes sociais fizeram o trabalho pesado. Estudos recentes demonstram que um jovem que assiste a um vídeo misógino pode, em apenas uma hora, ser bombardeado com conteúdo ainda mais agressivo, incluindo vídeos já banidos no passado. Em poucas horas, suas redes sociais se tornam um ecossistema de conteúdo machista. Isso explica a popularidade de Andrew Tate, influenciador britânico-americano que se autodeclara misógino e acumula milhões de seguidores, mesmo sendo acusado de estupro, tráfico de pessoas e formação de quadrilha para exploração sexual de mulheres. Tate surge como uma figura central na série “Adolescência”, da Netflix – um fenômeno televisivo de 2024 que explora como a “machosfera” radicaliza jovens.

E o que Bloodworth descobriu ao se afogar nesse mar de conteúdo machista? Um modelo de negócios sofisticado, operado por “gurus” que lucram explorando as inseguranças de suas vítimas. Na real, muitos desses caras são golpistas, segundo Bloodworth, usando táticas semelhantes a outros golpes online, como romances falsos, esquemas de apostas e pirâmides financeiras. A diferença? Além do prejuízo financeiro, há uma doutrinação ideológica, direcionada principalmente a adolescentes, que transforma ideias misóginas radicais, antes confinadas a grupos marginais, em algo acessível a grandes massas.

A estratégia principal? Semear a insegurança. Quase todos os cursos e palestras usam a regra 80/20 – a ideia de que há escassez de mulheres e que os homens precisam se destacar. Oitenta por cento das mulheres estariam interessadas em apenas 20% dos homens – os “alfas”, bem-sucedidos e dominadores. O medo de não pertencer a esses 20% é a porta de entrada para muitos na “machosfera”.

Outra tática, comum também em golpes de apostas online, é a ilusão de riqueza. Em uma conferência nos EUA, mansões e Lamborghinis eram alugadas para fotos, criando a ilusão de um estilo de vida de luxo.

A seguir, trechos da entrevista de James Bloodworth à BBC News Brasil:

**BBC News Brasil:** Seu livro começa com você buscando conselhos de “pick up artists”. Conte sobre esse período.

**Bloodworth:** Há 19 anos, morava em Somerset, na Inglaterra, com minha avó. Estava voltando à faculdade, minha vida tava parada, minhas habilidades sociais, atrofiadas. Era um cara tímido. Achei que a faculdade resolveria meus problemas sociais, mas não rolou. Um dia, pensando em uma garota da faculdade, pesquisei no Google “como conseguir uma namorada”. Encontrei um fórum de “artistas da sedução” que diziam ter todas as respostas, um roteiro para conquistar uma mulher. Era atraente, pois tudo que eu tinha tentado tinha falhado. Comprei o livro “O Jogo” do Neil Strauss e me inscrevi em um treinamento em Londres em março de 2006. Passei meses na faculdade tentando usar esses métodos. Nos fóruns, desafios como abordar cinco mulheres por dia e pedir as horas ou o número de telefone. Algumas coisas me ajudaram, sabe? Eu não encontrava essas informações em outro lugar e tinha vergonha de perguntar para amigos e familiares. Mesmo com a misoginia, não sentia vergonha de estar naquele grupo.

**BBC News Brasil:** Esses grupos de 20 anos atrás não parecem tão perigosos quanto os de hoje. Mas as sementes da masculinidade tóxica já estavam lá. Você acha que poderia ter se radicalizado?

**Bloodworth:** Levei um tempo para perceber que aquelas pessoas não tinham as respostas. Me interessei por uns seis meses. Digamos que 20% dos conselhos eram úteis, 80% era lixo. A parte boa? Eles me estimularam a sair mais. Precisa sair três vezes por semana e se esforçar para socializar. Isso melhora suas habilidades sociais. Essa parte era verdade. Mas percebi que podia praticar a parte boa sem precisar do resto, que era misógino e manipulador. A longo prazo, isso estraga seus relacionamentos. Outra diferença? Não existiam algoritmos me puxando para um buraco mais fundo. Eu entrava nos fóruns, lia por algumas horas e fechava. Meu navegador não era “colonizado” por conteúdo sobre masculinidade tóxica e golpistas do YouTube. Em 2018, quando comecei a escrever o livro, depois de assistir a vídeos de Jordan Peterson, minhas timelines estavam cheias de conteúdo sobre masculinidade, culpando feministas, a esquerda e progressistas. Um estudo na Austrália mostrou que um garoto que assiste a um vídeo de Jordan Peterson no Instagram recebe, em uma hora, sugestões de vídeos de Andrew Tate. E se ele assiste a um vídeo de Tate, recebe só sugestões de mais conteúdo dele. O algoritmo facilita a queda nesse buraco sem fundo. Alguns criadores colocam só um pouco de conteúdo extremista, mas com o tempo… você acaba consumindo coisas bem sinistras.

**BBC News Brasil:** Quais foram as experiências mais chocantes?

**Bloodworth:** Para o livro, voltei a esse mundo. Frequentei cursos e workshops. A experiência mais imersiva foi nos EUA, em Las Vegas, onde passei seis meses disfarçado em um curso chamado “Men Of Action” (Homens de Ação), que custava US$ 10 mil e incluía mentorias com Michael Sartain, o líder, por seis meses. Havia eventos presenciais, seminários sobre como ser um “macho alfa” e sessões de fotos no deserto de Nevada, com Lamborghinis alugadas pela empresa. Era tudo voltado para criar um “status” online. Mansões luxuosas eram alugadas para fotos, para dar a impressão de que os participantes moravam lá. Era mais vergonhoso do que chocante. O que era chocante era a linguagem depreciativa sobre as mulheres. Passei um tempo em Orlando com um movimento “pílula vermelha”. Tomar a pílula vermelha, para eles, significa ver a “verdade” de que os homens são oprimidos. O feminismo seria um movimento para oprimir os homens. Esperava ouvir discursos sobre mulheres, feminismo, falsas acusações de estupro, divórcio sem culpa e fraudes de paternidade. Mas também houve muita coisa política. Havia uma espécie de aliança com Donald Trump e o movimento MAGA. Em um evento, conheci um cara preso por invadir o Capitólio em 6 de janeiro. Havia muita retórica incendiária sobre uma guerra civil para livrar os EUA de liberais, LGBTs e feministas. Havia muito antissemitismo. Algumas pessoas se gabavam de conhecer Lyndon McLeod (extremista misógino que matou cinco pessoas em Denver em 2021) e tinham fotos com ele.

**BBC News Brasil:** Qual o perfil dos homens na “machosfera”?

**Bloodworth:** Conheci vários tipos. Pessoas comuns que passaram por traumas que criaram inseguranças. Homens vítimas de relacionamentos abusivos (sim, homens também podem ser vítimas, embora essa realidade seja menos levada a sério). Conheci pessoas com problemas com mulheres desde sempre, e o material online racionalizou essa hostilidade. Isso já existe no mainstream. Não há uma linha clara entre “machosfera” e patriarcado mainstream. Mas tudo mudou com os algoritmos, principalmente entre garotos. Conheci um garoto de 13 anos que começou assistindo a vídeos de kickboxing no YouTube, o que o levou a Andrew Tate. Tate o fazia se sentir um idiota, um “macho beta”, enquanto ele se apresentava como um salvador. Os gurus fazem as pessoas se sentirem inseguras, principalmente adolescentes. É um golpe. Eles dizem: se você não seguir meus conselhos, nunca vai conseguir uma namorada. A regra 80/20 é usada: 80% das mulheres

Fonte da Matéria: g1.globo.com