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Cássia Eller é perfilada com texto raso, mas fluente, de biografia monocromática

Capa do livro ‘Eu queria ser Cássia Eller – Uma biografia’, de Tom Cardoso
MIlton Montenegro com design de Daniel Justi
♫ OPINIÃO SOBRE LIVRO
Título: Eu queria ser Cássia Eller – Uma biografia
Autor: Tom Cardoso
Cotação: ★ ★ ★
♬ “Falar de Cássia é coisa fácil, mas tudo parece pouco. Ela é gigante, ampla, complexa e multicolorida”, sentencia Nando Reis, ao se referir a Cássia Eller no presente, em fala reproduzida na contracapa do livro Eu queria ser Cássia Eller – Uma biografia.
De fato, parece que ninguém entendeu todos os tons da alma de Cássia Rejane Eller (10 de dezembro de 1962 – 29 de dezembro de 2001), uma das maiores cantoras do Brasil de todos os tempos.
Ao longo das 304 páginas da biografia escrita pelo jornalista Tom Cardoso e lançada nesta semana pela editora Harper Collins, a artista é perfilada em narrativa fluente, mas superficial, que deixa a sensação de estar incompleta, sem a exposição de todos os lados das várias histórias contadas ao longo do livro.
Cássia é retratada o tempo todo como o ser humano acuado que rejeitava códigos sociais, paralisava diante dos ídolos e somente se soltava na intimidade da casa (com a mulher e o filho) e sobretudo na estrada e no palco, viajando com os amigos para se apresentar em cidades e locais pequenos, dividindo o camarim (quando havia um) com os músicos, longe do radar da imprensa.
Avesso de uma estrela, Cássia Eller era tão moleca que se permitiu apertar o pênis de Keith Richards, cumprimentado o guitarrista da forma lúdica como abordava os amigos mais íntimos.
Escrito com base em material publicado na imprensa e em entrevistas feitas pelo autor com nomes como a viúva Maria Eugenia Vieira Martins (autora do prefácio), o empresário Felipe Casqueira, o guitarrista Walter Villaça e Anna Butler (diretora de relações artísticas da MTV na época em que Cássia gravou o álbum acústico que a transformou em 2001 em cantora de massa), o livro soa raso, sem apresentar trabalho de investigação mais profundo que desse conta de expor todos os tons da Cássia Eller “multicolorida” apontada por Nando Reis no texto da contracapa.
Estruturada em ordem cronológica, a partir do momento em que Cássia já tem oito anos, a narrativa é centrada na luta da artista para se impor como cantora (sem concessões) e, quando a carreira engrena, nas sucessivas quedas de braço da cantora com empresários, diretores de gravadoras e todo um status quo da indústria da música, para preservar a paz e a liberdade.
Sem falar na luta interior de Cássia para ficar sóbria, longe do álcool e da cocaína, sobretudo após o nascimento do primeiro e único filho, Francisco Ribeiro Eller, o Chicão, o hoje cantor, compositor e músico conhecido como Chico Chico. Detalhe curioso: tão arisco quanto a mãe e também avesso aos códigos do showbiz, Chico Chico não deu depoimento para o biógrafo.
Mesmo nesse tom monocromático, é justo ressaltar a habilidade de Tom Cardoso para escrever um texto sedutor, redigido com clareza e objetividade jornalística, sem tentar forçar estilo ou erudição.
Tampouco sem pisar no terreno do sensacionalismo, o autor descortina bastidores interessantes das gravações dos álbuns de Cássia Eller. A postura dissonante do produtor Luiz Brasil na gestação do álbum Acústico MTV era fato até então conhecido por poucos. Assim como o fato de Cássia ter sido pressionada a gravar a canção Palavras ao vento (1999), parceria de Marisa Monte com Moraes Moreira (1947 – 2020), no álbum Com você… Meu mundo ficaria completo (1999), disco em que a cantora consolidou um processo de suavização do canto que iniciara no álbum Cássia Eller (1994). Tanto que Cássia se recusou a cantar Palavras ao vento no show, nem mesmo (ou sobretudo) quando Marisa e Moraes estavam na plateia.
E por falar em Marisa Monte, o livro também enfatiza que, quando ambas as cantoras tinham o mesmo empresário, Leonardo Netto, Cássia se ressentia da falta de atenção de Netto, sobretudo no período em que Marisa lançava discos e/ou shows.
A respeito do álbum de 1994, o livro rebobina a intransigência de Marcos Maynard ao assumir o comando da gravadora Polygram e obrigar Cássia a gravar as músicas Partners (Luiz Schiavon, Paulo Ricardo e Paulo P.A. Pagni, 1988), Lanterna dos afogados (Herbert Vianna, 1989) e Try a little tenderness (Harry Woods, Jimmy Campbell e Reg Conelly, 1932). Uma violência artística que Cássia teve que engolir porque devia dinheiro à gravadora, que havia custeado as despesas do parto de Chicão.
Em contrapartida, a biografia faz justiça a Mayrton Bahia, executivo da indústria fonográfica conhecido pela sensibilidade e pelo respeito aos artistas. Mayrton deu aval para Cássia Eller ser como ela era nos dois primeiros álbuns, Cássia Eller (1990) e O marginal (1992).
O álbum de 1990 marcou a estreia de Cássia Eller no mercado fonográfico após um contrato leonino assinado pela cantora com a gravadora SBK (então vinculada à EMI Music) e nunca cumprido de fato (o distrato foi providenciado com diplomacia quando houve o interesse de Mayrton Bahia de lançar Cássia na Polygram).
Mayrton Bahia, aliás, sentencia em depoimento a Tom Cardoso que o álbum Cássia Eller & Victor Biglione in blues – gravado em 1992, arquivado e lançado somente em 2022 – teve a edição abortada por desentendimento entre a cantora e o guitarrista Victor Biglione, jamais por desinteresse da gravadora. Biglione não corrobora essa versão em depoimento ao biógrafo.
Enfim, a narrativa de Eu queria ser Cássia Eller – Uma biografia se alimenta dos embates travados por Cássia ao longo da vida louca vida para preservar a independência e a liberdade. Essa luta foi tão grande que o coração da leoa cansou e parou de bater aos breves 39 anos. Cássia Eller se foi no auge, deixando no ar a sensação de que ainda tinha muito a fazer na música do Brasil.
Para alimentar a aura já quase mitológica em torno de Cássia Eller, foram lançados vários discos póstumos, documentário e, há dias, a produtora Migdal Filmes confirmou a realização da cinebiografia Cássia com direção de Diego Freitas. O livro Eu queria ser Cássia Eller – Uma biografia é mais um produto que orbita em torno da saudade deixada por Cássia Eller.
O livro é bom pela fluência do texto e por algumas histórias dos agitados bastidores da vida da artista, mas o conteúdo se insinua insuficiente. Como reconhece Nando Reis, falar de Cássia Eller é fácil, mas tudo parece pouco…
Cássia Eller (1962 –2001) tem enfocada no livro a luta permanente da artista contra o status quo da indústria da música
Divulgação

Fonte da Matéria: g1.globo.com