Criar conteúdo online sobre a rotina de trabalho virou febre! Em novembro passado, o g1 mostrou como a vida de muitos trabalhadores se misturou com a de influenciadores digitais, os chamados “blogueiros CLT”. Mostrarem os perrengues do dia a dia rendeu fama e uma graninha extra pra vários, mas, olha só, essa história ganhou um novo capítulo: o incômodo das empresas com esses funcionários-influenciadores, que em alguns casos, resultou em demissão.
A psicóloga Thamiris Castro, 30 anos, trabalhava em presídios cariocas há quase dois anos quando, em abril de 2022, decidiu compartilhar curiosidades da profissão no TikTok. Os vídeos bombando, mostrando a rotina sem firulas – nada de roteiro, iluminação profissional ou filtros – viralizaram. Mas, em junho de 2023, cerca de um ano e dois meses depois do primeiro vídeo, ela foi demitida.
Thamiris suspeita que as redes sociais tiveram a ver com a demissão, já que a chefe começou a segui-la uma semana antes. “Nunca levei uma advertência, ninguém me disse que eu estava errada. Depois que aconteceu, pensei: se fosse um problema, poderiam ter me dado a chance de escolher. Faltou diálogo, uma conversa, uma negociação, sabe?”, lamenta. Ela garante que teria adaptado o conteúdo se tivesse sido avisada: “Talvez eu não parasse, mas mudaria algumas coisas, tipo não mostrar o crachá ou citar casos específicos. O combinado não sai caro, né?”.
Juridicamente, a empresa não pode proibir ou restringir as postagens dos funcionários nas redes sociais. Porém, o trabalhador também não pode vazar informações confidenciais ou prejudicar a imagem da empresa. Em casos de má conduta online, com impacto na reputação da empresa, a demissão por justa causa é possível. (Saiba mais sobre o assunto)
A preocupação com as redes sociais não se limita aos “blogueiros CLT”. Geovanna Pedroso, 23 anos, profissional de marketing, trabalhou por quatro anos em agências, consultorias e empresas de tecnologia. Em 2019, começou a produzir conteúdo digital como hobpor, sobre moda, comportamento e inovação. Enquanto estudava e trabalhava, mantinha esse “segundo turno” como criadora de conteúdo, que com o tempo, se profissionalizou.
“Sempre foi uma válvula de escape. Mostrava os produtos que comprava, tipo blush e iluminador. Muitas meninas se identificaram e começaram a me seguir pra acompanhar minha rotina”, conta Geovanna. “Sempre foi hobpor, nunca trabalho principal. Gravava à noite ou nos fins de semana, depois do expediente”, explica.
Mesmo sem expor seu emprego nas redes, Geovanna sofreu represálias. “Cheguei a ouvir piadas em reuniões, tipo: ‘vamos fazer igual à Geovanna, postar uma publi agora, porque se a gente for demitido, pelo menos teremos alguma garantia'”, relata. Em setembro de 2023, a empresa fez um corte de funcionários e ela foi desligada. Embora o trabalho como influenciadora não tenha sido citado como motivo, outros colegas que também criavam conteúdo digital foram demitidos.
Com a carreira no marketing interrompida, a internet se tornou sua única fonte de renda, mas com muita instabilidade. “Consigo me manter, mas não tenho segurança financeira. Em alguns meses fecho boas publicidades e ganho bem. Em outros, fico no limite”, desabafa. Sem contrato com agência, ela busca sozinha parcerias e publicidades. “O que era hobpor virou obrigação”, conclui.
Para Geovanna, muitas empresas veem funcionários que produzem conteúdo como ameaça, principalmente quando ganham mais visibilidade que a própria marca. Falta compreensão sobre esse novo perfil de trabalhador e como os “blogueiros CLT” podem ser aliados, ajudando as empresas. “Acredito que seja mais por uma questão de proteger a imagem e os interesses da empresa. Mas muitas vezes essas conversas não se alinham. Se a empresa tá bem estruturada, não precisa ver esse funcionário influenciador como ameaça”, avalia.
Leandro Oliveira, diretor da Humand no Brasil e especialista em gestão de pessoas, afirma que essa postura defensiva demonstra falta de maturidade para lidar com a era digital e uma perda de oportunidade estratégica. “A empresa que vê isso como risco está perdendo espaço. Tá desperdiçando uma força de trabalho que já existe internamente e que poderia ser um catalisador em áreas normalmente difíceis de alcançar”, afirma.
Ele destaca que algumas empresas ainda não têm presença ativa nas redes, mas, como muitos clientes estão no ambiente digital, é fundamental rever essa estratégia. Em vez de contratar influenciadores externos, por que não aproveitar o próprio talento interno e remunerá-lo por isso? “É bom senso: se a empresa quer que ele produza conteúdo, não pode esperar que faça isso só no tempo livre. O ideal é reconhecer esse esforço como parte da cultura da organização e remunerá-lo”, reforça.
Leandro critica o modelo de comunicação “top-down”, sem espaço para o protagonismo dos funcionários. “Empresas que não criam canais de escuta e participação interpretam mal a visibilidade desses colaboradores”, diz.
Dado Schneider, doutor em comunicação pela PUC/RS, diz que o fenômeno dos “blogueiros CLT” não é tão novo assim, apenas ganhou novos formatos com a expansão digital. Ele identifica diferentes perfis: os que promovem a empresa espontaneamente; os que usam o nome da empresa para fortalecer a imagem pessoal; e os que seguem tendências sem estratégia.
“Os costumes mudam mais rápido do que nossa capacidade de entender e regular. Por isso, muitas empresas preferem simplificar: se a pessoa é blogueira, afastam logo, para não incomodar os demais”, explica. Ele compara a situação à proibição de telas em sala de aula: o Brasil tem a tendência de simplificar, eliminar o “problema” em vez de buscar soluções. “Essas pessoas começaram a divulgar as empresas ou a se promover por meio delas, e alguns cresceram tanto que a primeira reação foi afastá-los, quando, na verdade, poderiam estar ajudando muito”, afirma.
Schneider aponta que as empresas ainda não acompanham o ritmo das transformações digitais. Para ele, o principal motivo das demissões nem sempre é a quebra de regras, mas sim ressentimentos internos. “A maior parte das demissões dos ‘blogueiros CLT’ acontece por inveja ou ciúme profissional. Alguns realmente passam dos limites, mas a maioria mais ajuda do que atrapalha”, diz. Muitas vezes, o blogueiro tem mais visibilidade que colegas em cargos mais altos, o que incomoda.
Existe ainda o risco para os criadores de conteúdo demitidos, que podem ter dificuldade de recolocação, principalmente em setores mais conservadores, devido à “lista negra”. “Isso sempre existiu, principalmente com profissionais vistos como ‘perigosos’ ou ‘incômodos demais’. Acho essa prática injusta: o trabalhador tem o direito de errar em uma empresa e dar certo em outra. Mas, infelizmente, acontece”, conclui.
Para Jéssica Palin Martins, especialista em saúde emocional corporativa, as redes sociais são apenas mais uma forma de renda extra, desde que não prejudique o desempenho profissional. “Tem gente que vende produtos de beleza, faz trufas, bolos no pote, trabalha como garçom à noite. Rede social é só mais uma forma de renda extra. Se não atrapalha a entrega, está tudo certo”, explica. O problema surge quando há falta de resultados ou quando a exposição serve para atacar a empresa. “Se estiver tudo acordado e for positivo, ótimo. Caso contrário, é justo reavaliar”, diz. Não há proibição legal para que um funcionário CLT tenha renda extra como influenciador digital, mas é importante verificar se o contrato de trabalho prevê algum impedimento. (Saiba mais sobre o assunto)
Yuri Santos, 23 anos, trabalhou como assistente de social media e aparecia nos conteúdos da empresa. Após quase dois anos, foi desligado – prefere não detalhar o motivo por questões de sigilo. “Eu era uma figura pública dentro da empresa e também nas minhas redes. Quando saí, muita gente se surpreendeu”, conta o jovem, formado em marketing. Ele afirma que antes desse emprego não era tão ativo nas redes. “Existe um antes e depois de entrar nessa empresa. Eu não gostava de aparecer, mas passei a curtir e a produzir conteúdo. Gosto de gravar vídeos e aprendi tudo isso lá dentro”, completa.
A visibilidade conquistada abriu novos caminhos: após a demissão, usou o LinkedIn e o Instagram para anunciar a saída e atraiu novas oportunidades. Hoje, já está empregado em uma marca do setor de beleza. Além do novo emprego CLT, mantém um perfil pessoal ativo e administra, com amigas, uma segunda conta sobre cultura, moda e entretenimento. “É uma jornada tripla. Gravo nos fins de semana, edito à noite e programo os posts. Às vezes durmo só 1h da manhã para acordar às 6h. Mas eu amo essa rotina”, conta Yuri, que ainda não
Fonte da Matéria: g1.globo.com