Ísquia, uma ilha vulcânica no Mar Tirreno, guarda um segredo fascinante: Aenaria. Há quase dois mil anos, uma erupção vulcânica, provavelmente do Monte Cretaius, por volta de 180 d.C., engoliu essa cidade portuária romana, submergindo-a nas profundezas da Baía de Cartaromana. Diferente da tragédia de Pompeia, registrada por Plínio, o Jovem, o desaparecimento de Aenaria ficou engolido pelo tempo, sem registros escritos detalhados do evento. Por quase dois milênios, sua existência se confundiu com a lenda.
A história de sua redescoberta é tão incrível quanto seu passado misterioso! Em 1972, dois mergulhadores encontraram fragmentos de cerâmica romana e lingotes de chumbo na costa leste de Ísquia. Uma pista! Investigações iniciais, lideradas pelo padre Don Pietro Monti e o arqueólogo Giorgio Buchner, não chegaram a lugar nenhum. A baía foi isolada, e o mistério permaneceu por quase 40 anos.
Aí, em 2011, velejadores locais apaixonados pela história da região resolveram mergulhar fundo no assunto – literalmente! Eles encontraram, a dois metros abaixo do leito marinho vulcânico, as ruínas de um enorme píer romano. Incidentalmente, escavações posteriores revelaram um tesouro subaquático: moedas, ânforas, mosaicos, vilas costeiras e até mesmo restos de madeira de um navio antigo. Impressionante, não?
Até então, a história oficial de Ísquia era basicamente grega. Pithecusae, como os gregos a chamavam, era a primeira colônia grega na península Itálica, fundada por volta de 750 a.C. Eles exploravam as propriedades terapêuticas das fontes termais vulcânicas da ilha. Hoje, Ísquia é um renomado spa, um paraíso de bem-estar, mesmo estando localizada em cima do supervulcão dos Campos Flégreos. Essa mesma atividade vulcânica, que moldou a beleza exuberante da ilha, sempre foi apontada como a razão pela qual os romanos não teriam se estabelecido ali permanentemente. Mas Aenaria veio mostrar que essa teoria não era tão simples assim.
Os romanos, após conquistar Pithecusae por volta de 322 a.C., mudaram o nome para Aenaria. O nome aparece em textos antigos, de Plínio, o Velho a Estrabão, muitas vezes relacionado a eventos militares. Entretanto, ao contrário dos gregos, que deixaram para trás uma rica necrópole, fornos e cerâmica, os romanos deixaram apenas alguns túmulos modestos e alguns vestígios de opus reticulatum – uma técnica de construção romana com blocos sobre um núcleo de concreto, em padrão cruzado.
Giulio Lauro, morador local e fundador da Marina di Sant’Anna, braço cultural da cooperativa de turismo Ischia Barche, conta como tudo começou. Sem ser cientista, Lauro, apaixonado pelo mar, resolveu, em 2010, explorar a região. Ele e vários grupos culturais, com marinheiros, historiadores amadores e arqueólogos, financiaram as escavações por conta própria. Foi um trabalho árduo, cheio de desafios burocráticos e financeiros. Mas a persistência deles resultou numa descoberta monumental.
Alessandra Benini, arqueóloga líder do projeto, lembra dos desafios: conseguir autorizações, treinar a equipe, garantir financiamento… Foi tudo feito do zero. Mas a fé e a persistência valeram a pena! A narrativa histórica de Ísquia foi reescrita. Aenaria não era apenas um nome em textos antigos; era uma cidade real, grandiosa e complexa, agora revelada ao mundo. A crença de que os romanos nunca construíram uma cidade em Ísquia caiu por terra. Foi exatamente o oposto!
Hoje, banhistas e turistas na Baía de Cartaromana provavelmente nem imaginam o tesouro que está sob seus pés. Marianna Polverino, guia turística local, afirma que a maioria dos moradores sabe da descoberta, graças aos arqueólogos, mas poucos turistas têm consciência da existência e da possibilidade de visitar Aenaria.
A cada verão, Benini e sua equipe realizam escavações, um trabalho lento e árduo devido à falta de recursos. Maria Lauro, arqueóloga consultora, lamenta a priorização de investimentos em sítios arqueológicos mais conhecidos, como Herculano e Pompeia. A turbulência do mar limita as escavações entre maio e outubro.
Mas, durante esses meses, é possível fazer passeios de barco com fundo de vidro, ou até mesmo mergulhos, para observar as ruínas de perto. A experiência começa com uma projeção de vídeo 3D no auditório da cooperativa, onde artefatos são exibidos sob um piso de vidro, sobre areia que simula o fundo do mar. Eu mesma pude caminhar sobre ânforas, lamparinas a óleo e opus spicatum, azulejos em padrão espinha de peixe, típicos das antigas lojas romanas. O vídeo, mesmo voltado para crianças, me deixou fascinada.
O píer se estende pela costa, revelando uma cidade romana resplandecente, com ruas de paralelepípedos e edifícios com colunas. Imagino o pânico de um soldado romano ao ver o píer ruir sob seus pés há quase dois mil anos. Benini acredita que um tsunami ou um terremoto pode ter destruído as estruturas e arrastado tudo para o mar. Uma imagem poderosa!
Apesar do progresso, ainda há mistérios. Aenaria era uma cidade ou um nome que se referia à ilha inteira? Benini esclarece que Aenaria era Ísquia. O que foi encontrado foi um assentamento romano com um porto conectado ao Mediterrâneo, e possivelmente uma área habitada maior. A datação por radiocarbono apontou que as estacas de madeira do píer datam entre os anos 30 e 75 d.C.
A descoberta de um naufrágio em 2020 revelou equipamentos navais, como um poste de amarração em forma de cabeça de cisne (típico de embarcações militares romanas), estilingues de chumbo, reforçando a hipótese de Aenaria ser um importante posto militar que controlava o Golfo de Nápoles. As ânforas, com 142 variantes de argila de 12 áreas mediterrâneas, da Campânia ao Levante, revelam a amplitude do comércio de Aenaria. Análises recentes mostram que o chumbo veio da Espanha, mostrando a rede intercultural da cidade. Além do porto, havia uma vila com galerias em forma de túnel, alcovas e vestígios de banhos romanos.
O futuro das escavações depende de mais investimentos. Benini sonha em encontrar as fundações da cidade residencial. O desafio é alcançar um público maior, pois 99% do sítio arqueológico está submerso. Mas, como Pompeia, que permaneceu desconhecida até o século XVIII, Aenaria prova que a história pode ser reescrita, mesmo que esteja escondida sob as águas. E a equipe de Ischia já reescreveu uma parte importante da sua própria história.
Fonte da Matéria: g1.globo.com