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As “Leis da Feiura”: Como os EUA Criminalizaram a Pobreza e a Deficiência no Século XIX

Pouco tempo depois do fim da Guerra Civil Americana (1861-1865), – apenas dois anos, pra ser exato – várias cidades americanas começaram a aprovar leis bizarras: decretos que proibiam a presença de “doentes, mutilados ou deformados” nas ruas. Imagina só! A frase do Oscar Wilde, “É melhor ser bonito do que bom”, parece ter ganhado um significado terrível naquele contexto.

Na segunda metade do século XIX, várias cidades e pelo menos um estado americano criaram leis que basicamente criminalizavam certas características físicas, tudo em nome da estética da época. Essas leis, que previam multas e até prisão, ficaram conhecidas, ironicamente, como “leis da feiura”. Um absurdo, né?

O objetivo? Manter os pobres e indigentes longe das cidades que cresciam a passos largos. Susan Schweik, reitora de artes e humanidades da Universidade de Berkeley, e autora do livro “The Ugly Laws: Disability in Public”, explica: “As ‘leis da feiura’ eram decretos municipais que proibiam pessoas com certas características físicas em locais públicos”.

A primeira dessas leis foi aprovada em São Francisco, em 1867. A portaria proibia qualquer pessoa “doente, mutilada ou deformada de tal forma a se tornar um objeto nojento ou repulsivo” em ruas, praças e parques. E essa “moda” pegou! Cidades como Reno (Nevada), Portland (Oregon), Lincoln (Nebraska), Columbus (Ohio), Chicago (Illinois), Nova Orleans (Louisiana), e até o estado da Pensilvânia adotaram leis parecidas. Em Chicago, em 1916, a justificativa do jornal Tribune foi a de “remover a feiura das ruas”. Schweik comenta: “A ‘feiura’, no caso, parece se referir a objetos, tipo pilhas de tijolos. Mas as ‘obstruções’ que eles queriam remover eram pessoas.”

A Guerra Civil deixou milhares de feridos e mutilados, mas, curiosamente, várias dessas leis excluíam os veteranos. Na época, alguns justificavam as leis como forma de controlar doenças e proteger a saúde pública. Schweik explica uma crença da época: “A tese da ‘influência materna’ dizia que se uma mulher grávida visse alguém doente ou mutilado, o bebê poderia nascer com problemas.” Essa ideia bizarra aparece num texto de 1906 do clérigo Charles Henderson, que defendia o isolamento dos “indesejáveis”. Ele escreveu: “O epilético é um objeto de terror… ninguém que veja uma convulsão escapa da lembrança aterrorizante.”

Schweik acredita que não foi coincidência as leis terem surgido logo após a Guerra Civil. São Francisco, diz ela, “estava em choque urbano, se recuperando da corrida do ouro, e vivia uma grande migração, especialmente da China. As ruas estavam cheias de gente em dificuldades.”

Um detalhe chocante: muitas dessas leis tinham o apoio de organizações de caridade! Além de proibir a mendicância, elas impediam deficientes de trabalhar como vendedores ambulantes ou artistas de rua. Raquel Mangual, pesquisadora do Instituto de Deficiências da Temple University, afirma: “Essas regras institucionalizavam pessoas consideradas repugnantes.” A punição? Multas e prisão. Schweik completa: “Era uma prisão perpétua não oficial.”

Embora aparentassem focar na estética, especialistas afirmam que o alvo principal era outro. Mangual explica: “Tinha pouco a ver com beleza física. Eram usadas para tirar das ruas pessoas com deficiência, sem-teto ou com doenças como epilepsia.” Guy Caruso, especialista em deficiências da Temple University, concorda: “Sem-teto, deficientes ou mutilados eram, na maioria, pobres, que mendigavam para sobreviver. As pessoas os achavam repugnantes.”

As leis não só escondiam as pessoas, como também dificultavam a sobrevivência delas, proibindo a mendicância. Em Chicago, a multa era de US$1 por infração (mais de R$ 100 hoje). Não só moradores de rua foram afetados, mas também vendedores ambulantes e artistas de rua. Schweik cita um caso em Cleveland, em 1910, de um homem com mãos e pés machucados que vendia jornais e foi proibido de trabalhar porque “não era trabalho para aleijado”. Em Portland, uma vendedora de jornais foi chamada de “visão terrível demais para crianças” e teve que ir para Los Angeles.

O número exato de afetados é desconhecido, já que não havia registros. Mas o impacto foi muito além das vítimas diretas. Schweik afirma que as leis se conectavam a outras leis racistas e eugênicas. Mangual completa: “Facilitou leis de esterilização compulsória de pessoas com deficiência ou doenças mentais.” Schweik ressalta: “Franklin Delano Roosevelt não era o alvo. O alvo eram os pobres.” Vale lembrar que Roosevelt, aos 39 anos, contraiu poliomielite e ficou paralisado, mas sua condição era ocultada em público.

As “leis da feiura” perderam força no século XX e foram revogadas na década de 1970, graças ao movimento pelos direitos dos deficientes. Schweik conta um caso em Omaha (Nebraska), em 1970, em que um policial tentou prender um sem-teto usando uma dessas leis, mas um juiz rejeitou. A manchete de um jornal local, “Lei da mendicância só pune os feios”, é a razão do nome que usamos hoje, apesar da palavra “feio” não aparecer nas leis.

A Lei dos Americanos com Deficiência (ADA), de 1990, tornou essas leis ineficazes. Mas, segundo os especialistas, as consequências permanecem. Mangual diz que o espírito dessas leis “ainda está arraigado no subconsciente”, e que pessoas com deficiência ainda são vistas como crianças. Schweik afirma que a cultura das “leis da feiura” continua viva, citando Donald Trump como exemplo, que, no início dos anos 1990, fez campanha contra sem-teto e deficientes na Quinta Avenida, em Nova York. Hoje, em vez de leis explícitas, cidades usam métodos mais sutis para afastar quem é considerado “inestético”, como bancos e móveis urbanos que impedem moradores de rua de dormir ou mendigar.

Fonte da Matéria: g1.globo.com