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“Sou um homem morto”: O heroísmo do piloto do voo Ethiopian 961 contra sequestradores e o pouso desesperado no mar

Era final de tarde, um sol lindo na praia de Galawa, nas Ilhas Comores. Um casal sul-africano em lua de mel no único resort do país assistia a um espetáculo inusitado: um avião voando baixo sobre o mar. Achando que era algum show aéreo, a turista pegou a câmera – celulares com câmera ainda não existiam – para registrar o momento. Mas, olha só, a gravação registrou algo bem diferente de um show: um Boeing 767 pousando com tudo no mar, girando, capotando e se desintegrando nas ondas. Essa fita, vendida por um preço absurdo pra uma agência internacional, mostrava o trágico fim do voo Ethiopian Airlines 961, após um sequestro tenso em 23 de novembro de 1996.

(⚠️Esta reportagem faz parte de uma série do g1 sobre acidentes e incidentes aéreos, mostrando como aconteceram e o que aprendemos com eles. No final, você confere a lista completa!)

A história começa a mais de 2.300 km dali, em Adis Abeba, capital da Etiópia. O país tinha acabado de sair de uma guerra civil brutal de 16 anos (1974-1991), com 1,4 milhão de mortos. Relatos de perseguição política ainda pipocavam por aí.

A Ethiopian Airlines, porém, era uma ilha de organização no meio do caos. Era uma das poucas companhias africanas com certificação de segurança para voar na Europa e nos EUA nos anos 90. Foi por isso que o diplomata americano Franklin Huddle, que trabalhava em Mumbai, na Índia, escolheu a Ethiopian para uma viagem de férias com a esposa ao Quênia, para um safári.

Huddle era um dos 163 passageiros do Boeing 767-200ER, no voo 961 de Adis Abeba para Nairobi. De lá, o avião faria mais algumas paradas em Brazzaville (Congo), Lagos (Nigéria) e Abidjã (Costa do Marfim). A tripulação tinha 12 pessoas, incluindo o comandante Leul Abate, 42 anos, e o copiloto Yonas Mekuria, 34.

Mas o voo nem chegou perto de Nairobi. Uns 20 minutos depois da decolagem, três etíopes invadiram o cockpit e anunciaram o sequestro. Eles diziam ser parte de um grupo de 11 pessoas com uma bomba a bordo, e que só desistiriam se o avião mudasse de rota. Armados com um extintor e um machado (pra quebrar a proteção do cockpit, imagina!), eles fizeram a tripulação refém.

▶️Contexto: diferente de hoje, sequestros de avião eram bem comuns nos anos 70 e 90. A segurança nos aeroportos era bem mais frouxa. Dá pra acreditar? Era possível até visitar a cabine de comando durante o voo! Segundo a Aviation Safety Network, houve 747 sequestros nesse período. Tudo mudou após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA. A partir daí, as cabines ficaram blindadas, com acesso restrito à tripulação durante o voo. Os controles de bagagem e a identificação de passageiros também ficaram muito mais rígidos.

Leul já tinha experiência com sequestros. Em 1992 (num Boeing 727) e em 1995 (num 737), ele havia sido sequestrado. Nos dois casos, apesar de criminosos armados com granadas, ninguém se feriu e todos os sequestradores se renderam. Mas dessa vez… era diferente. Yonas levou uma surra e foi jogado pra fora do cockpit. Com um machado na cabeça, Leul ouviu a exigência inacreditável dos sequestradores: levar o avião até a Austrália!

O problema? O Boeing 767 só tinha combustível suficiente pra chegar a Nairobi (um voo de 2h15). Tinha combustível extra pra esperar no ar e ir pra um aeroporto alternativo, mas nada perto do que seria necessário para um voo direto pra Austrália. Isso é regra na aviação, tá?

Leul tentou explicar que era impossível, mas os sequestradores mostraram uma revista de bordo dizendo que o avião conseguia ir até a Austrália. Era uma informação fora de contexto, claro. Ele tentou convencê-los a fazer uma escala em Mombasa, no Quênia, pra reabastecer, mas eles acharam que era uma armadilha.

Leul conseguiu autorização para avisar o controle de tráfego aéreo. Ele desviou o voo para o Oceano Índico, mas em direção ao sul da África, na esperança de encontrar um lugar seguro para pousar quando o combustível acabasse.

Os sequestradores eram um mistério. Primeiro, não eram 11, como diziam; eram só três. Relatos diziam que eram fugitivos ou ex-detentos. Eles falavam inglês, francês e amárico (uma língua da Etiópia), mas entre si só falavam francês – algo incomum na Etiópia. Leul, experiente, desconfiou que a bomba era falsa, mas com um machado no pescoço… o que importava era a sobrevivência naquele momento.

A obsessão deles era a Austrália. Leul foi obrigado a mandar uma mensagem pra lá pelo controle de tráfego aéreo. A conversa é surreal:

Controlador de Nairobi: “Ethiopian 961, centro de Nairobi, confirme que você vai pousar na Austrália.”

Leul: “Senhores, nós não conseguiremos chegar à Austrália. Nós só temos duas horas de combustível, não conseguiremos chegar à Austrália. Vamos ter que fazer um pouso na água.”

O controlador de Nairobi ficou chocado ao saber que os sequestradores recusavam pousar em Mombasa para reabastecer. Ele implorou, pediu por favor… Quatro minutos de silêncio. Mais apelos. As últimas palavras de Leul ao mundo foram: “Não tenho nenhum aeródromo alternativo, estou em uma situação muito difícil”. O sequestrador arrancou os fones e os óculos do comandante.

Os sequestradores eram imprevisíveis e agressivos. Bebiam o álcool do serviço de bordo, ameaçavam Leul… cansados da costa africana, mandaram ele virar para o Oceano Índico. Mas Leul viu no mapa um arquipélago: as Comores. A ilha principal tinha uma pista grande o suficiente para um 767, perto da capital.

Por 30 minutos, o gravador da cabine registrou a conversa entre Leul (sério e às vezes firme) e os sequestradores (já bêbados). O chefe do bando tinha um tique: terminava as frases em amárico com “finished” (acabou) em inglês. Eles discutiram sobre avisar os passageiros de um pouso na água.

Leul: “Nós vamos morrer de qualquer forma.”

Sequestrador: “Então você quer que a gente mate você? A partir de agora, estamos de acordo, não é? Chega de conversa. O que dissemos na partida? Não quebramos promessas, nunca quebramos, deixamos isso ir até onde pôde, então [ininteligível] não é?”

Leul: “Por favor, me deixe pelo menos fazer um pouso controlado.”

Sequestrador: “Por quê? Eu vou morrer junto. Vou mostrar minha coragem. Não vou desembarcar sozinho, finished. Vamos morrer juntos uns aos outros.”

O tom de brincadeira com a morte mudou quando o alarme de falta de combustível tocou e o motor direito falhou. O 767, a 39 mil pés (11.887 metros), começou a descer. O sequestrador achou que Leul estava fazendo isso de propósito.

Leul: “Não sou eu que está fazendo a aeronave descer.”

Sequestrador: “Eu avisei! Finished.”

Leul aproveitou a distração do sequestrador, pegou o comunicador e avisou os passageiros em inglês: “Aqui é o seu piloto. Ficamos sem combustível e estamos perdendo um motor neste momento, e estamos prevendo um pouso forçado, e isso é tudo o que tenho a dizer. Já perdemos um motor, e peço a todos os passageiros que reajam aos sequestradores. Obrigado.”

Isso causou um rebuliço. Os sequestradores ficaram furiosos. Um motim começou, mas não vingou. Com passageiros de 36 países, a cabine era uma torre de Babel de pânico.

Frustrados, os sequestradores aumentaram as ameaças. O segundo motor parou. A caixa-preta registrou manobras descontroladas: um sequestrador tentou pilotar o avião sem saber.

Leul: “Todos nós vamos morrer.”

Sequestrador: “Não se mexa.”

Fonte da Matéria: g1.globo.com