Era uma tarde quente de julho no verão europeu. O comandante Christian Marty, com o icônico nariz do Concorde apontado para oeste, se preparava para a decolagem na pista do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Os quatro motores Olympus 593 rugiram, anunciando o início de uma viagem que, em teoria, levaria cerca de três horas e meia até Nova York, cruzando o Atlântico duas vezes mais rápido que a velocidade do som. Incrível, né? Mas a realidade seria bem diferente. Em apenas 121 segundos, o voo Air France 4590 se tornaria uma tragédia, marcando o fim da era dos voos supersônicos de passageiros.
(⚠️ Esta reportagem faz parte de uma série do g1 que reconstrói acidentes e incidentes aéreos, analisando suas causas e as lições aprendidas. Ao final, você encontra links para outros capítulos.)
Entre 1976 e 2003, os Concordes eram sinônimo de luxo e velocidade, transportando milionários e celebridades em voos transatlânticos regados a champanhe e caviar – um privilégio que hoje só se encontra nas primeiras classes de algumas companhias aéreas. Mas em 25 de julho de 2000, tudo mudou. Há mais de 23 anos, um voo que prometia ser inesquecível terminou em desastre. A história envolve um dos maiores feitos da engenharia e uma pequena peça de metal, com pouco mais de 43 centímetros – tipo uma régua grande – que caiu na pista de decolagem.
Uma Mudança de Última Hora: O voo AF 4590 levava 100 passageiros, turistas alemães que haviam comprado um pacote incluindo uma viagem de navio pelo Caribe até o Equador após a chegada em Nova York. A agência de viagens fretou um Concorde da Air France. Na época, apenas 13 dessas aeronaves supersônicas estavam em operação, todas pertencentes à Air France ou à British Airways. A razão? O Concorde era caríssimo de operar e manter, muitas vezes gerando prejuízo para as companhias.
Até então, o histórico do Concorde era impecável: 24 anos de operação comercial sem acidentes com vítimas. Mas, na noite anterior ao voo 4590, a Air France trocou o Concorde inicialmente designado por uma aeronave reserva, a F-BTSC. Em uma inspeção de última hora, um defeito em um dos motores foi identificado, e uma peça foi substituída por outra de uma aeronave reserva. Além disso, um erro fez com que mais bagagem fosse embarcada do que os pilotos sabiam, afetando o cálculo do peso total. Olha só que complicação!
Na cabine, o comandante Christian Marty (54 anos), o co-piloto Jean Marcot (50 anos) e o engenheiro de voo Gilles Jardinaud (58 anos) – um profissional cuja função já não existe mais na aviação comercial devido à automação – tinham vasta experiência com o Concorde. Às 16h34, o avião iniciou o táxi até a pista 26R. Com 109 pessoas a bordo (100 passageiros e 9 tripulantes), o Concorde estava pesado e os tanques de combustível foram preenchidos quase totalmente. O avião era um “bebedor” de combustível, e cerca de duas toneladas de querosene foram consumidas apenas para chegar à cabeceira da pista.
A Pequena Protagonista da Tragédia: Assim como os motores Olympus não eram lá muito eficientes no taxiamento, as famosas asas em delta do Concorde, projetadas para a velocidade supersônica (Mach 2), também não eram ideais para decolagem. O Concorde precisava de muita pista e velocidade para decolar. Apesar da pista 26R ter 4.142 metros, Marty solicitou à torre o uso de toda a sua extensão.
Às 16h37, um DC-10 da Continental Airlines decolou da mesma pista. Em um evento que passou despercebido, devido às inspeções menos rigorosas da época, uma barra de metal de liga de alumínio-titânio, com 43 cm, que fazia parte do capô do motor do DC-10, caiu na pista. Essa peça, que já apresentava sinais de falha, seria a causadora da tragédia.
Um Erro de Cálculo: Às 16h39, enquanto o Concorde se aproximava da pista, a tripulação fez o briefing pré-decolagem, definindo as velocidades V1 (150 nós – 277,8 km/h – velocidade de não retorno), VR (198 nós – 366,7 km/h – velocidade de rotação), e V2 (220 nós – 407,4 km/h – velocidade de subida segura). A VR estava um pouco mais alta devido ao vento de cauda. Procedimentos de emergência também foram definidos.
Um minuto depois, o engenheiro de voo informou que o consumo de combustível durante o taxiamento foi de 800 kg, bem abaixo das duas toneladas previstas. A tripulação não sabia, mas o Concorde estava 800 kg acima do peso máximo de decolagem permitido, complicando ainda mais a decolagem.
“Quatro Verdes”: Às 16h42:17, a torre autorizou a decolagem. Após 24 segundos, o copiloto confirmou 100 nós (185 km/h). O engenheiro anunciou “quatro verdes”, indicando que todos os motores estavam funcionando normalmente. Às 16h43:03, o copiloto anunciou V1. A decolagem não poderia mais ser abortada.
Decisões Extremamente Difíceis: A análise da caixa-preta revelou uma pequena variação na velocidade lateral do Concorde seis segundos após atingir V1. Às 16h43:09.5, um pneu do trem de pouso esquerdo passou sobre a peça de metal que havia caído do DC-10.
A partir daí, tudo aconteceu muito rápido. O comandante decidiu continuar a decolagem, pois abortá-la após a V1 teria consequências igualmente fatais. A poucos metros da pista, um Boeing 747 com o presidente Jacques Chirac a bordo aguardava para pousar.
O Engenheiro Avisa: Falha no Motor 2; Um Alarme Toca: A sequência de eventos, segundo o relatório final, foi a seguinte:
* 16h43:11: Mudança significativa no ruído de fundo, indicando incêndio.
* 16h43:11.9: Som ininteligível e o comandante move o leme para a direita.
* 16h43:12: Perda de empuxo nos motores 1 e 2.
* 16h43:13: “Cuidado!” grita o engenheiro de voo.
* 16h43:13.4: Um controlador avista chamas.
* 16h43:20.4: “Falha no motor 2”, avisa o engenheiro.
* 16h43:20.9: O motor 1 parece voltar a funcionar.
* 16h43:21.9: O Concorde decola.
* 16h43:22: Alarme de incêndio.
* 16h43:27.2: O copiloto chama atenção para a velocidade.
* 16h43:30: O comandante tenta recolher o trem de pouso, mas está travado.
* 16h43:31: O controlador confirma as chamas e autoriza o retorno à pista.
Múltiplos alarmes de incêndio soaram. O copiloto alertou repetidamente sobre a baixa velocidade. Às 16h44:11.5, o motor 1 falha novamente, o incêndio deforma o aileron e a asa esquerda. O avião gira para a esquerda. Às 16h44:31.6, a gravação da caixa-preta termina. O Concorde se choca contra um hotel em Gonesse, a 10 km do aeroporto. 113 pessoas morreram: os 109 a bordo e 4 em solo.
Uma Série de Descobertas: A BEA (agência francesa de investigação de acidentes aéreos) identificou a peça de metal como a causa inicial. A investigação revelou que o Concorde já havia sofrido 75 incidentes envolvendo pneus, alguns com danos estruturais e nos tanques de combustível. Em 1979, um incidente nos EUA causou vazamento de 4 kg de combustível por segundo. No voo 4590, o vazamento foi estimado em 60 kg/s. O pneu atingiu a barra de metal, estourando e projetando pedaços de borracha contra o tanque 5,
Fonte da Matéria: g1.globo.com