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Retiro dos Legendários: Fé, Fome e Força em Busca da “Lenda”

**Diário de um Legendário – Parte 1: A Chamada da Montanha**

“Disciplina militar e pouca comida.” Essa frase, dita a mim e a mais 168 homens, resume a essência do retiro masculino e cristão dos Legendários, que virou febre nas redes sociais. Uma febre cercada de mistério, diga-se de passagem. Celebridades como Eliezer (ex-BBB), Neymar pai, Thiago Nigro e Tirulipa o celebram como uma experiência transformadora. Por outro lado, críticos apontam uma visão ultrapassada da masculinidade. Mas, na real, muita gente fala sem saber direito o que rola por lá. Como homem cristão, criado em família evangélica e curioso sobre o assunto, resolvi encarar a montanha. Agora posso contar: o que acontece, de fato, no meio dos Legendários?

Não levei celular, câmera, nada disso – eletrônicos eram proibidos. Mas anotei tudo. O que você vai ler aqui é o que eu vi, ouvi e vivi durante o retiro em junho de 2025. Já no primeiro dia, ficou claro: esforço físico e disciplina militar são tão importantes quanto a fé. O g1 publica esse diário em quatro partes, de sábado (26) a terça-feira (29).

**Boné, Número e Nada de Atalhos**

Cheguei às 13h03 no local anunciado por uma semana no grupo de WhatsApp “TOP#1071 – DESCOBRIMENTO BAHIA”. O número do nosso Track Outdoor de Potencial (TOP), 1.071, é único no mundo. Cada retiro recebe uma numeração exclusiva do Legendários Global. E quem completa as 72 horas do TOP ganha um número pessoal. No domingo, recebi o boné de legendário 130.821 – ou seja, 130.819 homens me antecederam nessa jornada. Jesus, considerado o “legendário nº 1”, é claro, não passou por isso.

Cada um foi designado a uma “família”. Caí na Família 2, com mais 12 caras. Logo percebi: improviso não tinha vez. A lista de itens, passada várias vezes no zap, era crucial. Manta térmica, barraca, lanterna – itens obrigatórios. Boné, agasalho, meias – opcionais. Vindo de SP, levei uma sacola com roupas extras, pensando em deixá-la na igreja (ponto de partida). A resposta dos organizadores? Sempre a mesma: “Desfrute o caminho, senhor” ou “Siga a lista”. Aí entendi. Minha sacola virou peso extra na mochila de 16 kg.

No gramado da igreja, conhecemos o “Voice”, o cara que dava as ordens – um gigante, voz firme. Qualquer erro de um membro da família resultava em dez “sentadillas” (agachamentos) para todos. Qualquer erro mesmo, viu? Deixar algo no chão, fazer a contagem dos agachamentos sem entusiasmo… Se não havia um responsável, todas as famílias pagavam a conta. A punição só acabava quando alguém assumia a culpa.

Éramos “senderistas” (de “sendero”, caminho em espanhol). Estávamos no caminho para nos tornarmos legendários. Aprendemos o grito “AHU” (Amor, Honra e Unidade), tipo um “Sim, senhor!” ou grito de vitória. Era o começo de uma imersão que misturava disciplina militar e fé cristã.

**(Imagem: Participantes de retiro dos Legendários executam juntos as ‘sentadillas’, exercício de punição ensinado no 1º dia de evento. Vídeo foi feito antes de todos os eletrônicos serem confiscados pela organização. Fábio Tito/g1)**

**Cal e o Chamado da Natureza**

Um dos meus “irmãos” perguntou se eu tinha trazido os 200g de cal (obrigatório na lista). Ele levou 8kg, caso alguém precisasse. No fim, minha sacola e a montanha de cal subiram e desceram a montanha comigo. Pelo menos, usamos o cal no caminho, jogando sobre as necessidades fisiológicas para minimizar o impacto ambiental. O hidróxido de cálcio elimina o odor e endurece as fezes.

**Meio Família, Meio Militar**

Um dos primeiros exercícios: mãos dadas, correr até o fim do gramado e voltar, com mochilas nas costas. Depois, círculos por família, para nos conhecermos. A cada 30 segundos, um legendário fazia perguntas: “Qual o nome dele?”, “Quantos filhos?”, “Nome do animal de estimação?”. Erro? Mais 10 sentadillas. Precisávamos nos conhecer bem. No final, um legendário escolhia o líder e o sub-líder, aleatoriamente.

**Celulares Confiscados, Silêncio e Destino Desconhecido**

Por volta das 17h, recolheram todos os celulares, relógios… Perdemos a noção do tempo. Só recuperamos tudo três dias depois, em Salvador. Um sanduíche e uma banana antes de entrarmos num ônibus com destino desconhecido. Mochilas no colo, janelas fechadas… Ninguém sabia para onde íamos. Durante a viagem, um legendário lia o Salmo 91 (proteção divina). Conversar era permitido, mas sem exageros. Era uma mistura de expectativa e tensão. Chegamos numa cidadezinha da Bahia, com as placas de sinalização cobertas. Segredo total.

**O Retiro que Começa no Escuro**

Noite fechada. Trilha de terra batida. Só se ouvia forró ao longe (identifiquei Falamansa e um forró de Jorge Vercillo). Chegamos a um sítio, corredor de tochas acesas… Abrimos as mochilas. O que não estava na lista foi confiscado. Mas teve segunda chance: de olhos fechados, os homens se autodenunciaram. Pelo barulho, muita gente tinha algo a mais.

**Iguais na Fome, na Dor e na Fé**

Um momento marcante: cada um se identificou por profissão: médicos, empresários, pais… A quantidade de empresários me chamou atenção. Todos de pé. Então, recebemos um saco laranja lacrado (MRE – Meal Ready to Eat). Era nossa comida para três dias. Dentro:

* 1 biscoito de arroz integral
* 1 pacote de amendoim
* 1 barra de cereal
* 1 sachê de café solúvel
* 1 sachê de açúcar
* 1 pacote de sal

Só isso. A fome fazia parte do “rolê”.

**Cruz, Cova e Silêncio**

Hora de dormir? Trilha! Ganhamos mais 5 litros de água (5kg a mais!). Duas covas, cruzes brancas e pretas… Memorial aos “homens que morreram sem subir a montanha”. Uma cruz tinha o nome PH Nunes, falecido em 2021. Ficou na minha cabeça.

**Mato Denso e Olhinhos de Fora**

Trilha com mato denso, frio… “Família não deixa brecha!”, “Família não abandona família!” – frases repetidas sem parar. Além dos 170 senderistas, mais de 100 legendários (roupas laranjas) nos observavam. Silêncio, presença opressiva. Quase todos com panos no rosto, só os olhos apareciam. No começo, tentava cumprimentar, mas sem resposta. Depois, fingi que eles não estavam ali.

Um cara ameaçou desistir. Um irmão da família pegou sua mochila e seguiu com tudo nas costas. Se a ideia é “devolver um herói por família”, ele já poderia ter ido para casa.

Horas depois, chegamos a um descampado. Barracas em volta da bandeira da família. A minha, uma “obra de arte”, virou piada. Meu “buraco de tatu”, mas funcionou. Comecei a anotar tudo num caderno. Por que esses homens estão aqui? O que eles querem? O que é um “legendário”? Estava na terceira página, quando ouvi gritos de legendários lá fora…

Fonte da Matéria: g1.globo.com