Na escuridão do Oceano Índico, uma noite de junho de 1982, o Capitão Eric Moody fez um anúncio que entraria para a história da aviação. Com a calma britânica que o caracterizava, ele comunicou aos passageiros do Boeing 747 da British Airways, voo 009: “Senhoras e senhores, aqui é o comandante. Temos um pequeno probleminha. Os quatro motores pararam.” E, numa demonstração de profissionalismo admirável, completou: “Estamos fazendo o possível. Espero que ninguém esteja muito preocupado.”
Essa frase, aparentemente simples, resume um drama que quase terminou em tragédia. A história do voo 009 serve de lição crucial para a segurança aérea até hoje, mostrando como a preparação e a perícia da tripulação podem fazer a diferença entre a vida e a morte. (Esta reportagem faz parte de uma série do g1 sobre acidentes e incidentes aéreos, analisando seus desdobramentos e o aprendizado resultante. Ao final, você encontra outros capítulos publicados).
Às 20h40, horário local, o Boeing 747-200 – o maior avião de passageiros da época – estava em rota de Kuala Lumpur para Perth, numa jornada de Londres a Auckland com várias escalas. A bordo, 263 pessoas: 15 tripulantes e 248 passageiros, alguns dos quais, em breve, estariam escrevendo bilhetes de despedida em guardanapos. Moody (41 anos), o copiloto Roger Greaves (32) e o engenheiro de voo Barry Townley-Freeman (40) – uma função extinta na aviação moderna devido à automação – haviam assumido o comando da aeronave.
Tudo parecia normal até que uma fumaça estranha, com cheiro de enxofre, foi percebida. Nos anos 80, fumar a bordo era permitido, mas essa fumaça não era de cigarro. Enquanto Moody estava no banheiro, Greaves e Townley-Freeman viram um brilho intenso nas asas. Inicialmente pensado como “Fogo de Santelmo” – descargas elétricas atmosféricas comuns em tempestades –, o fenômeno era inexplicável em uma noite serena, sem previsão de mau tempo nos 500km seguintes, segundo os radares. Passageiros próximos às janelas também testemunharam o estranho espetáculo.
Ao retornar à cabine, Moody encontrou uma situação crítica. Greaves já havia colocado os motores em ignição contínua, um procedimento para fluxo de ar instável. A fumaça se intensificava, o calor aumentava e labaredas surgiram nos quatro motores. Em apenas três minutos, o motor 4 falhou, seguido pelo 2, 1 e 3. “Em um minuto e meio, passamos de quatro motores funcionando a nenhum”, relatou Greaves mais tarde.
A 11 km de altitude, o 747 se tornou um gigantesco planador. Greaves transmitiu um desesperado “Mayday, mayday, mayday. Speedbird 9, perdemos todos os quatro motores a 37.000 pés”. A torre de controle em Jacarta, inicialmente, achou que era apenas uma pane no motor 4, devido à interferência no rádio. Um piloto da Garuda Indonésia, na mesma frequência, esclareceu a gravidade da situação.
O Boeing descia a uma razão de 15 para 1 – 15 km de avanço para cada km de descida. Com cerca de 23 minutos até o impacto no oceano, os pilotos tentavam religar os motores repetidamente, sem sucesso. Moody fez uma curva de 180º em direção a Jacarta, mas alguns instrumentos, inclusive o velocímetro, falhavam – crucial para o religamento dos motores. Ele então começou a manobrar o avião, subindo e descendo o nariz, numa tentativa de acertar a velocidade ideal.
Ninguém, nem mesmo os pilotos, entendia o que acontecia. Perder os quatro motores em cruzeiro era inédito. Os simuladores de voo não previam a perda da pressurização da cabine, pois os motores alimentavam o sistema. Os pilotos colocaram as máscaras de oxigênio, mas a de Greaves estava quebrada, forçando Moody a acelerar a descida para evitar que ele perdesse a consciência. Máscaras de oxigênio foram distribuídas aos passageiros.
Para alcançar Jacarta, era preciso ultrapassar uma cordilheira em Java. Era necessário pelo menos 3200 metros de altitude. Sem outra opção, Moody fez seu famoso anúncio, minimizando a gravidade para evitar pânico. A atmosfera na aeronave era de terror. Charles Capewell, viajando com os filhos, escreveu um comovente bilhete de despedida para sua esposa.
A 3800 metros, um milagre: o motor 4 voltou a funcionar, seguido pelo 3, e então os outros. Um alívio imenso invadiu a aeronave, que subiu para superar a cordilheira. Mas o “Fogo de Santelmo” retornou e o motor 2 falhou. As luzes de Jacarta apareciam, mas a umidade ou algo que obstruía as janelas impedia a visibilidade, mesmo com os limpadores de para-brisas.
Apesar das dificuldades, o 747 pousou na pista 26 do aeroporto de Jacarta. Todos sobreviveram, ilesos. Anos depois, dois passageiros até se casaram. Mas o mistério persistia. Na pista, a pintura da aeronave estava gasta, as janelas riscadas – não era umidade, eram riscos.
A resposta estava no Monte Galunggung, um vulcão ativo próximo a Jacarta. Ele havia entrado em erupção horas antes, lançando uma nuvem de cinzas invisível aos radares (cinzas são secas, não contêm água, e os radares detectam umidade). As cinzas, altamente abrasivas, bloquearam os motores. Ao sair da nuvem, a pressão do ar quebrou os bloqueios de cinzas, permitindo o religamento.
A Rolls-Royce, fabricante dos motores, confirmou a obstrução por cinzas. A tripulação recebeu condecorações. Após um incidente similar com um voo da Singapore Airlines, a Indonésia fechou o espaço aéreo ao redor do Galunggung. Hoje, serviços meteorológicos fornecem informações mais precisas sobre cinzas vulcânicas, permitindo desvios de rotas. A erupção do Eyjafjallajökull, na Islândia, em 2010, causou grandes distúrbios no tráfego aéreo europeu, um preço alto, mas infinitamente menor que o quase desastre do voo British Airways 009.
**Outros textos publicados na série:**
* A história do voo TAP 131: como um garoto de 16 anos sequestrou um avião —e virou amigo do piloto anos depois
* Iran Air 655: como um navio de guerra dos EUA derrubou por engano um avião civil do Irã e matou 290 pessoas
* O desastre de Charkhi Dadri: como uma série de erros fez dois aviões baterem em voo, na colisão no ar mais mortal de todos os tempos
* Air Canada 143, o ‘planador de Gimli’: como um piloto pousou um Boeing numa pista de corrida após voar 17 minutos sem combustível
Fonte da Matéria: g1.globo.com