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Vinicius de Moraes: Gênio ou machista? Um olhar contemporâneo sobre o “poetinha”

Há 45 anos, em 9 de julho de 1980, morria Vinicius de Moraes, o “poetinha”. Seu legado, indiscutivelmente grandioso para a cultura brasileira, hoje é analisado sob uma lupa bem diferente. Trechos de poemas como “Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher/ Mas com singular delicadeza.”, “Formosa, não faz assim/ Carinho não é ruim…” e “Deus fez primeiro o homem/ A mulher nasceu depois…”, revelam uma faceta machista e misógina que, nos dias de hoje, o “cancelaria” sem dó.

Afinal, como conciliar a imagem do boêmio carioca, compositor de “Garota de Ipanema” (uma canção que, aliás, também sofre críticas por objetificar a mulher), com a sensibilidade poética de “Soneto da Fidelidade”? A questão é complexa, e especialistas em literatura e música têm opiniões diversas.

Lígia Menna, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma: “Com nosso olhar contemporâneo, identificamos em Vinicius uma visão machista. A objetificação feminina em ‘Garota de Ipanema’, por exemplo, é bastante clara.” Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), acrescenta uma camada de contexto histórico: “Todo escritor é filho de seu tempo. A fase pop de Vinicius coincide com a construção de uma mitologia nacional para vender o Brasil lá fora. Criar uma imagem da mulher ideal para o turista influenciou a construção dos preconceitos em sua obra. Ele também viveu como um personagem: o macho latino-americano, o malandro carioca. São armadilhas do momento. Hoje, nós caímos em outras armadilhas que a posteridade denunciará.”

Em maio deste ano, o músico Luca Argel, mestre em literatura pela Universidade do Porto, lançou o projeto “Meigo Energúmeno — Notas Para uma Leitura Antimachista de Vinicius de Moraes”. O projeto inclui um disco com releituras de clássicos e um livro que analisa criticamente o machismo na obra do poeta. “A obra de Vinicius continua viva, assim como os estereótipos de gênero que ela reforça, às vezes de forma sutil, romântica”, explica Argel. “Avançamos em termos de igualdade, mas muita coisa ainda está enraizada. Vinicius, por falar tanto sobre amor e mulher, pode nos ajudar a identificar onde esses problemas persistem.” Ele acredita que o próprio Vinicius, se vivo, revisitaria sua obra.

Nascido em 19 de outubro de 1913, na Gávea (Rio de Janeiro), filho de um funcionário público e poeta e de uma pianista, Vinicius mostrou talento para a escrita desde cedo. Estudou Direito na então Faculdade de Direito da Rua do Catete (hoje UFRJ), e nos anos 1930 chegou a se filiar à Ação Integralista Brasileira. Publicou seu primeiro poema em 1932 na revista “A Ordem”, e seu primeiro livro, “O Caminho para a Distância”, em 1933. Trabalhou como censor cinematográfico, estudou em Oxford e se tornou crítico de cinema antes de ingressar no Itamaraty.

Serviu em missões diplomáticas em Los Angeles, Paris e Montevidéu, mas foi aposentado compulsoriamente em 1969 pelo regime militar, um ato descrito pelo site oficial de seus herdeiros como uma ordem direta do presidente Arthur da Costa e Silva. Sanches Neto explica: “Vinicius era um diplomata relapso, dedicado à poesia e à música. Era uma espécie de ‘troféu’, que emprestava seu nome à carreira. Criou muitos embaraços. A ditadura aproveitou seu perfil boêmio e a acusação de comunista para exonerá-lo. Ele representava um Brasil que a ditadura não queria mostrar.” Na verdade, desde 1942, Vinicius já se afastara do integralismo e abraçava ideias comunistas, tornando-se oposição ao regime. “Vinicius era de esquerda, se posicionou contra a ditadura e era irreverente”, destaca Menna.

Em 2010, em um gesto simbólico de reparação, o presidente Lula o promoveu postumamente a embaixador. Celso Amorim, então ministro das Relações Exteriores, escreveu que sua aposentadoria foi uma “injustiça perpetrada pelo regime militar”. A exclusão do Itamaraty, no entanto, permitiu que se dedicasse ainda mais à arte, com parcerias famosas com Toquinho e shows internacionais muitas vezes marcados pelo consumo excessivo de álcool – algo romantizado na época, mas hoje alvo de críticas.

Vinicius teve uma vida intensa, marcada pelo alcoolismo (“o uísque era meu cachorro engarrafado”, dizia ele), nove casamentos (o último com a jornalista Gilda Mattoso, 38 anos mais nova), quatro filhos e uma vasta produção artística: 13 livros, dezenas de discos, cerca de 400 poemas. Sobreviveu a acidentes de avião e carro e a duas guerras mundiais. Drummond de Andrade dizia que ele era o único poeta brasileiro que vivia como um poeta. Um texto da revista Bravo! de 2008 o descreve como um homem dividido: entre a diplomacia e a poesia, a paixão e a tristeza, as festas e os bares. “Ninguém chegou tão perto da vida cotidiana”, disse Antonio Callado.

Sanches Neto considera a obra de Vinicius irregular, mas destaca sua evolução: de uma poesia formal e mística a uma poesia moderna que alcançou o grande público. Menna enfatiza sua capacidade de aliar tradição e modernidade, dessacralizando a literatura. A faceta mais problemática é a que apresenta a mulher como submissa e sensual, mas a professora lembra também de sua poesia social, com obras como “A Rosa de Hiroxima” e “O Operário em Construção”. Menna destaca a amizade com Pablo Neruda e a atualização que Vinicius deu ao soneto, tornando-o popular.

A questão do “cancelamento” de Vinicius é complexa. Menna acredita que sim, ele seria cancelado hoje, mas que, como progressista, ele mesmo revisitaria seu trabalho. Argel propõe uma crítica rigorosa e honesta como homenagem, não como cancelamento. Gilda Mattoso, sua viúva, afirma que, pessoalmente, ele não era machista, mas reconhece que, considerando a época em que viveu (1913), sua obra poderia dar essa impressão. Suas lembranças do convívio com Vinicius são de uma rotina harmoniosa, com ele sendo muito atencioso e delicado. Ela se via mais como uma figura materna para ele do que o contrário.

O legado de Vinicius permanece: a força de sua poesia, sua influência na música brasileira e sua trajetória singular. Seu “O amor é eterno enquanto dura” talvez seja a melhor síntese: o encanto dos mitos culturais não é eterno, mas resiste, se transforma e, se forte o suficiente, sobrevive até à crítica. Como o próprio “poetinha”.

Fonte da Matéria: g1.globo.com