Há 45 anos, em 9 de julho de 1980, morria Vinicius de Moraes, o “poetinha”. Seu legado na música e na literatura brasileiras é inegável, mas, hoje, a obra do artista é analisada sob uma lupa bem mais crítica. Trechos de poemas como “Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher/ Mas com singular delicadeza”, de “Elegia ao Primeiro Amigo” (1943), ou versos de “Formosa” (1965) – “Formosa, não faz assim/ Carinho não é ruim/ Mulher que nega não sabe, não/ Tem uma coisa de menos no seu coração” – e ainda “Maria Moita”, com a frase “Deus fez primeiro o homem/ A mulher nasceu depois/ E é por isso que a mulher/ Trabalha sempre pelos dois”, soam, para os ouvidos contemporâneos, profundamente machistas e misóginos. Seria o “poetinha” cancelado hoje? A pergunta ecoa forte nos debates atuais.
Para muitos leitores de hoje, esses exemplos são mais que suficientes para classificar parte da obra de Vinicius como problemática. Afinal, o cara era um ícone, com sua voz suave, andar arrastado, copo na mão e sempre uma mulher na cabeça, né? Impossível negar a sua importância na cultura brasileira. Poeta, compositor, dramaturgo, diplomata e um dos fundadores da bossa nova – a própria “Garota de Ipanema”, parceria com Tom Jobim, também alvo de críticas por sua objetificação da mulher –, Vinicius personificou o estereótipo do boêmio e mulherengo da elite carioca.
Mas a admiração não anula a crítica. “Com nosso olhar atual, identificamos nele uma visão machista. A objetificação feminina em ‘Garota de Ipanema’, por exemplo, é bastante clara”, afirma a professora Lígia Menna, pesquisadora de literatura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Miguel Sanches Neto, escritor e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), comenta: “Todo escritor é filho de seu tempo. A fase pop de Vinicius coincide com a construção de uma mitologia nacional para vender o Brasil lá fora. Era a era de ouro da bossa nova. Criar uma imagem da mulher ideal para o turista influenciou a construção desses preconceitos na obra dele.” Ele completa: “Vinicius viveu como um personagem, o macho latino-americano, o malandro carioca. São armadilhas do tempo. Hoje, caímos em outras armadilhas que a posteridade vai denunciar.”
Em maio, o músico Luca Argel, mestre em literatura pela Universidade do Porto, lançou o projeto “Meigo Energúmeno — Notas Para uma Leitura Antimachista de Vinicius de Moraes”. O disco traz releituras de clássicos de Vinicius, e um livro acompanha o trabalho, problematizando as vozes machistas na obra do artista. Argel explica: “A obra de Vinicius continua viva, assim como muitos estereótipos de homem e mulher, fórmulas patriarcais que definem os papéis sociais. Muitos textos dele reforçam esses lugares onde o machismo se manifesta, às vezes de forma sutil, quase meiga e romântica.” Ele pondera: “Evoluímos em termos de igualdade e voz para as mulheres, mas muita coisa ainda está enraizada. É um trabalho de gerações.” E completa: “Vinicius, por sua relevância e por falar tanto de amor e mulher, pode nos ajudar a identificar onde esses problemas persistem. Se estivesse vivo, tenho certeza que ele revisitaria sua linguagem, como fez tantas vezes na vida.”
Mas quem era, afinal, Vinicius de Moraes? Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu na Gávea, Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913, filho de um funcionário público, violonista e poeta, e de uma pianista amadora. Desde cedo, demonstrava talento para a poesia. Nos anos 1930, estudou Direito na então Faculdade de Direito da Rua do Catete (atual UFRJ), e chegou a flertar com o integralismo, filiando-se à Ação Integralista Brasileira. Em 1932, publicou seu primeiro poema na revista *A Ordem*, editada por Alceu Amoroso Lima. Seu primeiro livro, *O Caminho para a Distância*, saiu em 1933.
Em 1936, foi censor cinematográfico. Ganhou uma bolsa para estudar inglês em Oxford e, ao voltar, trabalhou como crítico de cinema em *A Manhã*. Queria ser diplomata, e conseguiu: ingressou no Itamaraty. Serviu em Los Angeles, Paris e Montevidéu, mas foi aposentado compulsoriamente em 1969 pelo regime militar, após ordem direta do presidente Arthur da Costa e Silva. Sanches Neto comenta: “Vinicius era um diplomata relapso, pouco presente na burocracia. Dedicava-se à poesia, música e cinema. Era um diplomata-troféu. Criou embaraços. A ditadura, aproveitando seu perfil boêmio e acusando-o de comunista, o exonerou. Ele representava um Brasil que a ditadura não queria mostrar: um Brasil dionisíaco, enquanto a ditadura queria um Brasil apolíneo.”
Na verdade, desde 1942, Vinicius já era influenciado por ideias comunistas, afastando-se do integralismo. “Vinicius era de esquerda, posicionou-se contra o regime militar e era bastante irreverente”, destaca Menna. A exclusão do Itamaraty permitiu que se dedicasse à arte. Desse período são suas parcerias mais famosas com Toquinho e suas turnês internacionais, muitas vezes com ele no palco embriagado – algo romântico na época, mas que hoje geraria críticas.
O álcool era sua constante. Atribui-se a ele a frase: “O uísque é o cachorro engarrafado”. Já consagrado, publicava livros, circulava entre intelectuais e boêmios, compunha sucessos e colecionava relacionamentos. Casou-se nove vezes, a última com a jornalista Gilda Mattoso, 38 anos mais nova, com quem viveu os seus últimos dois anos. Toquinho, no documentário *Vinicius*, dirigido por Miguel Faria, disse: “Casou-se nove vezes em busca de uma paixão eterna. A grande angústia é que ele sabia que não ia encontrar.” Drummond de Andrade dizia que Vinicius era o único poeta brasileiro que vivia como um poeta. Um texto da revista *Bravo!* de 2008 resume: “Vinicius se multiplicou: diplomata, nove casamentos, quatro filhos, dezenas de parceiros musicais, 13 livros, dezenas de discos, cerca de 400 poemas, sobreviveu a dois graves acidentes e duas guerras mundiais. Foi um homem dividido: entre o terno e gravata e a roupa branca e pés descalços; entre a euforia da paixão e a tristeza da separação; entre as festas do Itamaraty e os bares cariocas; entre o coro da igreja e o batuque do candomblé.” Antonio Callado, no mesmo documentário, disse: “Ninguém chegou tão perto da vida cotidiana, do prosaico.”
Sanches Neto considera a obra de Vinicius irregular, por sua grande produção. “O interessante é que começou com uma literatura velha, formalmente falando, mística, influenciada por escritores católicos, e depois descobre o Brasil, moderniza as formas de expressão e ganha lugar entre os grandes poetas modernos. Mas seu desejo de chegar à multidão o leva à música, tornando-o uma figura pop. Fez a carreira de jovem poeta velho para um velho poeta jovem. Rompeu o circuito meramente intelectual. Sua melhor poesia traz a soma destas três fases.” Menna enfatiza: “Nas artes, ele aliou tradição e modernidade. Rompeu com padrões pré-estabelecidos.” “Dessacralizou a literatura, assim como outros de sua geração.”
A faceta mais problemática é a devoção à mulher – quase sempre submissa, sensual e servil. Suas metáforas de amor submisso, românticas à primeira vista, são vistas hoje como reflexo de uma estrutura patriarcal. Menna lembra que Vinicius era amigo de Neruda e, “assim como ele, desenvolveu uma poesia sensual, do amor. Atualizou o soneto, deu uma nova linguagem mais real, moderna e cotidiana. Seus versos se tornaram populares.” Cita “de repente do riso fez-se o pranto” e “que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”. Mas a especialista destaca outras fases importantes, como seus poemas sociais: “A Rosa de Hiroxima” e “O Operário em Construção”. Mas ela alerta: não se pode “passar o pano” para os aspectos problemáticos. “O machismo marcou gerações. Nos anos 1950, 1960 e 1970
Fonte da Matéria: g1.globo.com