O 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, que completa 90 anos em 6 de julho, confirmou que a tradição da reencarnação continuará. Em outras palavras: vai ter sucessor, sim senhor! A declaração dele, feita do exílio na Índia, acabou com os boatos de que a linhagem do Dalai Lama ia acabar com a sua morte. Mas, olha só, encontrar a próxima reencarnação não tá fácil, não! Afinal, a sucessão do líder espiritual tibetano é um processo complexo, carregado de simbolismo e, agora, de uma tensão geopolítica sem precedentes.
O Dalai Lama é considerado a reencarnação do Bodhisattva da Compaixão, uma figura divina que volta ao mundo para aliviar o sofrimento. A escolha do sucessor não é uma eleição normal, nem hereditária, nada disso! Envolve a busca por um menino que, após uma série de sinais místicos e provas, será reconhecido como a continuação espiritual do líder. Aí que tá o pulo do gato!
O Ritual: Um Mistério com Sinais Divinos
O processo começa com um luto e uma contemplação profunda dos altos lamas – as autoridades espirituais do budismo tibetano – após a morte do Dalai Lama. Nessa fase de introspecção, eles buscam sinais sobre o local de nascimento da nova reencarnação. Um dos métodos mais famosos é a consulta ao lago sagrado Lhamo Latso, no sul do Tibete. Lá, o regente ou um monge de alto escalão observa a superfície da água em busca de visões.
No caso do atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso (que era Lhamo Thondup na infância), o regente viu três letras tibetanas e a imagem de um monastério com teto azul-turquesa, uma colina e uma casa com canaletas diferentes. Isso levou os monges ao monastério de Kumbum e, depois, à aldeia de Taktser, onde estava o menino, que tinha apenas dois anos e já reconhecia objetos pessoais do Dalai Lama anterior, dizendo “é meu, é meu!”. Essa espontaneidade foi crucial para a sua identificação.
Depois de identificar uma região, os monges vasculham cidades e vilas em busca de meninos nascidos pouco depois da morte do líder anterior. Eles ficam de olho em tudo: fatos extraordinários, sonhos proféticos, comportamentos inusitados, coincidências no nascimento… Os candidatos passam por testes, como reconhecer objetos do Dalai Lama anterior entre outros similares. Só quem passa pelos testes e tem os sinais místicos confirmando é considerado a reencarnação.
Uma vez reconhecido, o menino é levado para um monastério para anos de treinamento espiritual e filosófico, culminando na entronização no histórico templo de Potala, em Lhasa, no Tibete. A cerimônia é cheia de orações, cânticos, oferendas e a participação de altos lamas e autoridades religiosas. Depois, ele vai para o templo Jokhang para ser ordenado monge noviço, em uma cerimônia chamada taphue, que inclui o corte de cabelo, simbolizando a renúncia à vida mundana.
O Budismo Tibetano e a Sombra da China
A China ocupou o Tibete em 1950. Em 1959, após uma revolta contra o domínio chinês, o Dalai Lama, então com 23 anos, escapou para a Índia, disfarçado, e se estabeleceu em Dharamsala. Lá, criou o governo tibetano no exílio e reconstruiu sua comunidade.
A China vê o Dalai Lama como um “separatista”, proibindo sua imagem no Tibete e reprimindo qualquer demonstração de culto. O Dalai Lama, por sua vez, rejeita o controle chinês sobre o Tibete e sua religião. A sucessão do Dalai Lama se tornou um ponto de enorme conflito entre a China e os budistas tibetanos.
No livro “A Voz de Uma Nação” (HarperCollins Brasil, 2025), o Dalai Lama afirma que sua próxima reencarnação não nascerá em território chinês, mas sim “no mundo livre”. A Fundação Gaden Phodrang, criada por ele em 2011, ficaria responsável pela busca. Mas a China quer interferir, defendendo que o governo central deve aprovar a escolha, usando um método introduzido pelos imperadores Qing no século XVIII: a escolha de um nome de uma urna dourada.
Pequim justifica sua interferência com base em precedentes históricos e na soberania nacional, mas isso é visto com muito ceticismo pelos budistas tibetanos, principalmente depois do caso do Panchen Lama. Em 1995, o Dalai Lama reconheceu um menino como a reencarnação do Panchen Lama (a segunda figura mais importante do budismo tibetano), mas o menino e sua família foram presos pela China, e nunca mais foram vistos. A China impôs seu próprio Panchen Lama, ilegítimo para a maioria dos budistas.
A possibilidade de dois Dalai Lamas – um reconhecido pela Fundação Gaden Phodrang e outro pela China – é real. O próprio Dalai Lama já disse, em 2019, que nesse cenário, ninguém respeitaria o Dalai Lama imposto pela China.
Índia e Estados Unidos: Aliados no Cenário Internacional
A Índia, que abriga mais de 100 mil tibetanos no exílio, tem um interesse estratégico na presença do Dalai Lama em Dharamsala. Sua figura é importante na diplomacia indiana diante do avanço da China. Especialistas acreditam que a Índia se oporia a um Dalai Lama imposto pela China.
Os Estados Unidos também demonstraram preocupação com a questão. Em 2020, o Congresso americano aprovou a Lei de Política e Apoio ao Tibete, apoiando o direito do Dalai Lama de determinar o processo de sucessão e estabelecendo sanções a funcionários chineses que interferirem. A sucessão do Dalai Lama não é apenas uma questão religiosa, mas um palco de disputas geopolíticas complexas, envolvendo religião, identidade e poder. A busca pela próxima reencarnação promete ser um capítulo tenso na história do Tibete.
Fonte da Matéria: g1.globo.com