Quase 40 anos se passaram, e a lembrança da queda do voo Iran Air 655 ainda dói. Imagina só: 290 pessoas, 65 delas crianças, perdidas num instante. Uma tragédia imensa, que marcou profundamente o Irã e abalou, de vez, as já frágeis relações entre Teerã e Washington. A data, 3 de julho de 1988, é sinônimo de luto no país, com familiares das vítimas indo ao mar, ano após ano, para jogar flores em memória dos entes queridos.
Tudo começou numa manhã de domingo, sob o céu do Golfo Pérsico. Imagens chocantes de corpos flutuando na água invadiram as telas de televisão iranianas. O Airbus A300, que havia decolado do sul do país, fora atingido por mísseis disparados pelo USS Vincennes, um poderoso cruzador de mísseis guiados da Marinha americana. Os destroços caíram no mar, selando o destino de 254 iranianos, além de cidadãos de outras nacionalidades.
O USS Vincennes, lançado ao mar em 1984, era a “menina dos olhos” da Marinha americana. Equipado com tecnologia de ponta, incluindo o sistema de combate Aegis – presente em apenas cinco navios na época –, ele fazia parte de uma grande força naval que patrulhava o Golfo Pérsico e o Estreito de Ormuz, numa época de intensa tensão entre o Irã e o Iraque, sob o regime ditatorial de Saddam Hussein. Os EUA, aliados de Saddam, escoltavam navios que saíam do Kuwait, numa operação gigantesca.
Mas o que levou ao desastre? Uma série de erros, um dominó de decisões equivocadas. Naquela manhã, o Vincennes, sob o comando do capitão William Rogers III, estava com a proa apontada para o Bahrein, onde a Marinha americana tinha seu centro de comando. Outros navios americanos também patrulhavam a região.
Por volta das 7h, a fragata USS Elmer Montgomery detectou lanchas iranianas perto de um navio mercante paquistanês. Os iranianos estavam armados. O almirante Anthony Less, no Bahrein, decidiu enviar um helicóptero do Vincennes para averiguar a situação.
Aí começa o pesadelo. O tenente Mark Collier, a bordo do helicóptero, observa os barcos iranianos, que depois recuam. Mas, em vez de voltar ao Vincennes, ele decide escoltá-los…e ouve tiros e explosões! Assustado, ele reporta um ataque ao Vincennes.
O capitão Rogers interpreta isso como uma agressão, e as regras de engajamento – flexibilizadas após o ataque ao USS Stark em 1987 – permitem um contra-ataque. O Vincennes avança em direção à costa iraniana. Os radares, então, detectam o que parece ser um caça F-14 iraniano, uma ameaça real.
Enquanto isso, no aeroporto de Bandar Abbas, o comandante Mohsen Rezaian, de 38 anos e treinado nos EUA, prepara-se para decolar o voo 655 rumo a Dubai. Ele sabia dos protocolos: identificação por rádio, código civil (6760) no transponder, e voo por um corredor aéreo internacional. Tudo parecia normal… até que o inferno desabou.
A tensão na sala de comando do Vincennes era palpável. O operador de rádio detecta a decolagem em Bandar Abbas. Desconfia, checa a lista de voos, e o IFF (sistema de identificação) inicialmente indica uma aeronave civil. Mas o suboficial Andrew Anderson não está convencido.
Nos minutos seguintes, o Vincennes envia várias mensagens, pela frequência militar e civil. Uma nova checagem no IFF mostra… um avião militar se aproximando. O pavor de um ataque iminente toma conta da tripulação. “Possível Astro!”, grita Anderson, referindo-se ao código do F-14.
A situação se agrava. Um grito na sala de comando: a aeronave está “descendo e aumentando a velocidade”! Parece um ataque. A apenas 18 km de distância, Rogers ordena o lançamento de dois mísseis SM-2 Block II. Eram 10h24. O primeiro míssil atinge o alvo.
A alegria inicial dá lugar ao horror. Uma asa no mar, grande demais para um F-14… Eles haviam abatido o Iran Air 655. 290 pessoas, incluindo 16 mulheres e 65 crianças, pereceram na explosão.
A investigação, liderada pelo almirante William Fogarty, revelou erros cruciais. O sistema Aegis estava lendo sinais do aeroporto, confundindo-o com o avião. E, mais grave ainda: o Airbus não havia realizado nenhuma manobra de ataque. A tripulação do Vincennes, sob pressão, interpretou erroneamente a situação, um caso clássico de “confirmação de cenário”.
O relatório de Fogarty, embora não culpe diretamente os militares, aponta para uma série de falhas, incluindo a interface do sistema Aegis e a decisão de Rogers de se aproximar da costa iraniana sem autorização. A “névoa da guerra”, diz o relatório, foi a culpada. Mas o Irã também foi responsabilizado por permitir a decolagem de aviões civis perto de uma zona de conflito.
O USS Vincennes foi recebido como herói em San Diego. Rogers foi condecorado. Para o Irã, foi uma provocação. O regime de Khomeini acusou os EUA de um ato deliberado.
Uma investigação da ICAO (Organização da Aviação Civil Internacional) confirmou que o Iran Air recebeu poucas mensagens, e que a comunicação era confusa devido a diferenças na forma de calcular a velocidade. A aeronave iraniana estava em um corredor aéreo internacional.
Em 1992, a revista Newsweek, em um artigo intitulado “Mar de mentiras”, revelou que o Vincennes havia invadido o espaço aéreo iraniano, violando o direito internacional, e descreveu Rogers como um oficial “belicoso”, ansioso por combate.
A tragédia do Iran Air 655 deixou uma cicatriz profunda. As relações entre os EUA e o Irã, já tensas, nunca mais se recuperaram. A compensação financeira às famílias das vítimas nunca apagou a dor da perda e a falta de um pedido de desculpas público dos EUA. A lembrança dos 290 passageiros, incluindo aquelas 65 crianças, continua a assombrar a história.
Fonte da Matéria: g1.globo.com