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A Resistência Silenciosa dos Monges Tibetanos sob o Olhar da China

A poucos dias do 90º aniversário do Dalai Lama, a BBC se encontrou com monges tibetanos em Kirti, um monastério na província de Sichuan, no sudoeste da China. A visita, pra falar a verdade, foi um risco. Um monge, envolto em seu manto carmesim, as contas do rosário deslizando entre os dedos, conversou conosco, mas com medo. Éramos seguidos por oito homens misteriosos. Uma simples conversa em público poderia ter sérias consequências. “As coisas não estão fáceis pra gente”, disse ele, calmo, mas com um quê de apreensão na voz.

Kirti, já conhecido mundialmente desde o final dos anos 2000 pelas autoimolações em protesto contra o governo chinês, continua a ser um espinho no pé de Pequim. Uma delegacia de polícia imponente, bem na entrada principal, fica ao lado de uma pequena sala escura, onde o ranger das rodas de oração ecoa. Câmeras de vigilância, em postes de aço, vigiam cada movimento. “Eles não têm bom coração, todo mundo vê isso”, comentou o monge, antes de nos alertar: “Cuidado, estão de olho em vocês!”. Aí, os nossos “acompanhantes” correram em nossa direção, e o monge se afastou.

“Eles”, nesse caso, é o Partido Comunista Chinês (PCC), no poder há quase 75 anos sobre os mais de seis milhões de tibetanos, desde a anexação da região em 1950. A China investiu pesado na região, construindo estradas e ferrovias para impulsionar o turismo e a integração com o resto do país. Mas, segundo tibetanos que fugiram, esse desenvolvimento econômico trouxe também mais tropas e vigilância, sufocando a fé e a liberdade.

Pequim considera o Tibete parte inegociável da China e rotulou o Dalai Lama, líder espiritual exilado, como separatista. Mostrar sua imagem ou manifestar apoio público a ele pode levar à prisão. Apesar disso, em Aba (Ngaba, em tibetano), onde fica Kirti, muitos desafiam essas restrições.

Aba fica fora da Região Autônoma do Tibete (TAR), criada em 1965 e que abrange cerca de metade do planalto tibetano. Mas milhões de tibetanos vivem fora da TAR, considerando essa área parte de sua terra natal. Aba tem um histórico de resistência. Em 2008, protestos durante o levante tibetano, desencadeados, segundo relatos, por um monge que carregava uma foto do Dalai Lama dentro de Kirti, culminaram em um motim reprimido com violência pelas tropas chinesas. Pelo menos 18 tibetanos foram mortos. Os números divergem: Pequim fala em 22 mortos, enquanto grupos tibetanos no exílio estimam cerca de 200.

Nos anos seguintes, mais de 150 autoimolações em protesto pelo retorno do Dalai Lama ocorreram, principalmente em Aba e arredores, dando à rua principal o apelido sombrio de “corredor dos mártires”. A China intensificou a repressão, dificultando a obtenção de informações independentes sobre o Tibete. As poucas notícias que chegam vêm de quem fugiu ou do governo tibetano no exílio, na Índia.

No dia seguinte, antes do amanhecer, retornamos ao monastério, passando despercebidos pelos “supervisores”, para acompanhar as orações matinais. Monges com seus chapéus amarelos, símbolo da escola Gelug do budismo, entoavam cânticos baixos e profundos, enquanto a fumaça dos incensos pairava no ar úmido. Cerca de 30 pessoas, a maioria com trajes tradicionais tibetanos, participaram da cerimônia. “O governo chinês envenenou o ar do Tibete. Não é um bom governo”, disse um monge. “Nós, tibetanos, não temos direitos humanos básicos. Eles nos oprimem e perseguem. Não é um governo a serviço do povo.” As conversas foram curtas, para evitar problemas, mas essas vozes, mesmo sussurradas, são raras.

O aniversário de 90 anos do Dalai Lama deu ainda mais urgência à questão do futuro do Tibete. Centenas de seguidores se reuniram em Dharamshala, Índia, para homenageá-lo. Na quarta-feira (2/7), ele anunciou seu plano de sucessão, reafirmando que o próximo Dalai Lama será escolhido após sua morte. A reação foi variada – alívio, dúvida, ansiedade – em todo o mundo, exceto no Tibete, onde até sussurrar seu nome é arriscado. Pequim declarou que a próxima reencarnação será na China, com a aprovação do PCC. O Tibete, porém, permaneceu em silêncio. “É a realidade”, resumiu o monge.

A estrada para Aba, serpenteando por quase 500 km a partir de Chengdu, capital de Sichuan, atravessa picos nevados antes de chegar às pradarias do planalto tibetano. Templos budistas com telhados dourados brilham sob o sol intenso. Dois mundos coexistem sob esse céu: a tradição e a fé confrontam a busca do Partido por unidade e controle.

A China afirma que os tibetanos são livres para praticar sua fé. Mas essa fé é também a base de uma identidade cultural que, segundo grupos de direitos humanos, Pequim está corroendo. Inúmeros tibetanos são detidos por protestos pacíficos, promoção da língua tibetana ou posse de retratos do Dalai Lama. Muitos estão preocupados com as novas leis educacionais, que obrigam crianças menores de 18 anos a frequentar escolas estatais chinesas e aprender mandarim, proibindo o estudo de escrituras budistas em monastérios antes dessa idade, sob a alegação de que devem “amar o país e a religião, e seguir as leis e regulamentações nacionais”.

Essa mudança é drástica para uma comunidade onde monges eram frequentemente recrutados na infância e os monastérios funcionavam como escolas. “Uma instituição budista próxima foi demolida pelo governo há alguns meses”, contou um monge, na chuva, em Aba. “Era uma escola de pregação.” As novas regras, que seguem uma ordem de 2021 para que todas as escolas em áreas tibetanas ensinem em chinês, segundo Pequim, oferecem melhores oportunidades de emprego. Mas, segundo o acadêmico Robert Barnett, podem ter um “efeito profundo” no futuro do budismo tibetano. Barnett prevê uma era com pouco acesso à informação, declínio da língua tibetana e educação focada em cultura e valores chineses.

A estrada para Aba mostra o investimento chinês: uma nova linha férrea de alta velocidade liga Sichuan a outras províncias do planalto. Em Aba, hotéis, cafés e restaurantes se misturam às tradicionais lojas de vestes monásticas e incensos, atraindo turistas chineses. A vigilância, no entanto, é constante: check-in em hotéis exige reconhecimento facial, e até a compra de gasolina requer múltiplas identificações, exibidas para câmeras de alta definição. O controle da informação é rigoroso. Os tibetanos, segundo Barnett, estão “isolados do mundo exterior”.

Difícil saber quantos tibetanos conhecem o anúncio do Dalai Lama sobre a sucessão, transmitido ao mundo, mas censurado na China. Desde 1959 no exílio na Índia, o 14º Dalai Lama defendeu mais autonomia, não independência. Pequim o considera sem direito de representar o povo tibetano. Ele transferiu a autoridade política em 2011 a um governo no exílio, que negociou com a China este ano sobre a sucessão, sem resultados claros. O Dalai Lama sugeriu que seu sucessor viria do “mundo livre”, fora da China, declarando que “ninguém mais tem autoridade para interferir”. Isso prepara um confronto com Pequim, que afirma que o processo deve seguir “rituais religiosos e costumes históricos, e ser tratado de acordo com as leis e regulamentações nacionais”.

Pequim já está trabalhando para influenciar os tibetanos, diz Barnett, com um “enorme aparato de propaganda” ensinando as “novas regras” para a escolha do Dalai Lama. O caso do Panchen Lama, a segunda maior autoridade do budismo tibetano, que morreu em 1989, ilustra a estratégia chinesa. O Dalai Lama escolheu um sucessor, que desapareceu, e Pequim foi acusada de sequestro, embora afirme que o menino está seguro. Pequim então aprovou um Panchen Lama diferente, não reconhecido fora da China. Dois Dalai Lamas podem testar o poder de persuasão chinesa: qual o mundo reconheceria? A maioria dos tibetanos na China saberia da existência do outro Dalai Lama? A China quer um sucessor “verossímil”, talvez pouco verossímil, porque, segundo Barnett, quer “transformar o leão da cultura tibetana em um poodle”, substituindo o que considera ar

Fonte da Matéria: g1.globo.com