O 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, completa 90 anos em 6 de julho, e a questão de sua sucessão já causa ondas de preocupação – e não apenas entre os budistas. A China, a Índia e os EUA acompanham de perto esse delicado processo, carregado de implicações geopolíticas. Afinal, o líder espiritual é uma figura influente mundialmente, transcendendo as fronteiras do budismo.
Dalai Lama, um título que representa o líder supremo da escola Gelug do budismo tibetano, também foi, por muitos anos, o chefe político do Tibete. Desde a década de 50, o Tibete luta pela independência da China. Em 1959, após uma revolta frustrada contra Mao Tsé-Tung, o Dalai Lama se exilou na Índia. Sua luta pacífica pela libertação tibetana lhe rendeu o Nobel da Paz em 1989. Em 2011, ele abdicou de seu poder político, transferindo-o para um governo eleito no exílio, mas manteve seu posto espiritual.
A China, que vê no Dalai Lama um separatista perigoso, proíbe qualquer demonstração pública de afeição a ele, até mesmo imagens são censuradas. Por isso, a sucessão é um assunto extremamente sensível no cenário internacional.
Como o atual Dalai Lama foi escolhido? Nascido Lhamo Dhondup em 6 de julho de 1935, em Taktser (hoje, província chinesa de Qinghai), ele foi identificado aos dois anos como a reencarnação de seu predecessor, Thubten Gyatso. A escolha seguiu a tradição: sinais místicos, a identificação de objetos que pertenceram a Gyatso (“É meu, é meu!”, teria dito a criança, segundo sua biografia oficial), e a intuição de monges experientes. Enfim, em 1940, foi entronado no Palácio de Potala, em Lhasa, adotando o nome Tenzin Gyatso.
E agora? Como será a escolha do sucessor? A tradição manda que, após a morte de um Dalai Lama, lamas de alta hierarquia iniciam a busca por sua reencarnação. Eles seguem pistas místicas, visões, profecias e instruções deixadas pelo líder anterior. Uma equipe, discretamente, procura por sinais físicos específicos, como orelhas grandes ou marcas especiais. O candidato é então testado: reconhecimento de objetos pessoais do Dalai Lama anterior, identificação de pessoas próximas a ele em sua vida passada, lembranças de sua vida anterior… tudo isso entra na equação.
Olha só que complicação: o Panchen Lama, a segunda figura mais importante do budismo tibetano, também participa desse processo. Mas em 1995, a China sequestrou Gedhun Choekyi Nyima, de seis anos, o Panchen Lama escolhido pelo Dalai Lama, num ato classificado por entidades de direitos humanos como um sequestro político. Pequim impôs seu próprio candidato e aprovou leis que dão ao Partido Comunista o poder de aprovar todas as reencarnações.
No livro “Uma voz para os sem voz”, lançado em março de 2024, o Dalai Lama avisou: seu sucessor nascerá fora da China, no “mundo livre”. Ele prometeu detalhes sobre a sucessão perto de seu aniversário. Inclusive, cogita escolher um sucessor em vida, e até mesmo a possibilidade de uma mulher assumir o posto. A opção mais radical? Encerrar a linhagem com sua morte, para evitar a manipulação da figura do Dalai Lama por Pequim. “Haverá um plano para a continuidade da instituição dos Dalai Lamas”, declarou ele recentemente, sem maiores detalhes. O parlamento tibetano no exílio, em Dharamsala (Índia), garante que já existe um sistema para garantir a continuidade do governo até a escolha do sucessor. A Gaden Phodrang Foundation, fundada pelo Dalai Lama em 2015, será responsável pela busca.
E a China? Pequim alega ter o direito de aprovar o sucessor, citando uma tradição imperial do século XVIII. A lei chinesa determina que o novo Dalai Lama deve nascer na China e ser reconhecido por Pequim. O medo da China? A influência de grupos radicais tibetanos no exílio e a possibilidade de dois Dalai Lamas: um aprovado por Pequim e outro pelos exilados. Os tibetanos, por sua vez, temem a instrumentalização da sucessão pela China. O próprio Dalai Lama já disse que é inapropriado os comunistas chineses, que rejeitam a religião, interferirem na reencarnação de lamas, principalmente do Dalai Lama. Em seu livro, ele pediu aos tibetanos que não aceitem um candidato imposto para fins políticos, incluindo os da China. A diplomacia chinesa, por sua vez, chamou o Dalai Lama de exilado político sem direito de representar o povo tibetano, negando a repressão aos direitos tibetanos e afirmando ter trazido prosperidade à região.
Por que EUA e Índia se interessam tanto? A Índia abriga mais de 100 mil tibetanos. Além disso, o Dalai Lama é reverenciado por muitos indianos, e sua presença na Índia tem importância geopolítica. Os EUA, em acirrada competição com a China, defendem os direitos humanos dos tibetanos. Congressistas americanos já alertaram que não permitirão interferência chinesa na sucessão. Em 2024, o presidente Joe Biden assinou uma lei pressionando a China a resolver a questão da autonomia tibetana. A sucessão do Dalai Lama, portanto, é muito mais do que uma questão religiosa: é um complexo jogo geopolítico com desdobramentos ainda incertos.
Fonte da Matéria: g1.globo.com